A história das religiões é tão antiga quanto a própria história da humanidade. Para muitos estudiosos e teólogos, a história da religião está, intimamente, ligada ao nascimento da humanidade. Desde os primeiros sinais de consciência (psique), os seres humanos buscaram compreender o mundo à sua volta e seu real papel nele, muitas vezes por meio de crenças e saberes religiosos.
Hoje, no mundo contemporâneo, inúmeras são as expressões religiosas e numerosos são os seus seguidores. A religião, sendo esta monoteísta ou politeísta, desempenha papel crucial na formação humana de seus filiados. Formas de se encarar o mundo, levando em consideração a importância ética-social da religião nesse ciclo natural: A VIDA.
Muitas foram as práticas religiosas que se desenvolveram e se transformaram no contexto da diáspora africana. No Brasil, berço cultural de muitas expressões religiosas, a religiosidade africana vem ganhando cada vez mais destaque e espaço. Ao tomarmos o Estado do Ceará como exemplo, podemos perceber uma crescente de adeptos das religiões de matriz africana. Terreiros localizados em diversos bairros da capital cearense, ao exemplo dos terreiros presentes no bairro Bom Jardim & Granja Lisboa, representam verdadeiros quilombos de resistência.
Nesse movimento de firmeza e constância, vale destacar também o coletivo GRUPO CULTURAL FILHOS DO AXÉ – Localizado na região de Aracati. O Coletivo é uma associação pertinente aos movimentos e causas étnico-religiosas, participante na resistência da pluralidade histórica afro-brasileira.
Apesar de contarem com muitos adeptos, as religiões de matriz africana continuam sendo as mais perseguidas no Brasil. Um levantamento feito com base no número de denúncias ao canal do Ministério dos Direitos Humanos, mostrou que o Brasil apresentou um aumento de mais de 80% de casos de intolerância religiosa.
O Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), outro órgão vinculado à pasta, aponta que, em seis anos, as denúncias por crimes de intolerância religiosa em páginas da internet triplicaram – os números saltaram de 1,4 mil registros em 2017 para 4,2 mil em 2022. (Fonte: Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania – MDHC – Disque 100)
Por qual razão a religiosidade afro-brasileira é perseguida?
Por qual motivo, mesmo sofrendo de todos os lados, religiões como o Candomblé & Umbanda, continuam resistindo?
Para respondermos a estas perguntas, precisamos entender como se deu a chegada da religiosidade africana em nosso país e como foi seu processo de resistência ao longo do tempo.
Ao contrário do que se pensa, na África antes da chegada dos europeus, não só havia povos organizados em tribos. Houveram, além do Egito, diversos reinos e impérios bastante desenvolvidos, em vários aspectos, tais como, tecnológicos, econômicos, educacionais, culturais, e religiosos.
Durante todo o período que se compreende a escravidão, muitos foram os povos e grupos étnicos que, forçadamente retirados de África, foram trazidos para território brasileiro. Um número gigantesco de homens, mulheres, crianças e idosos, tratados como se fossem mercadorias. Na verdade, por muito tempo, a economia do Brasil, alimentou-se do trabalho escravo.
Os africanos eram capturados e transportados em condições desumanas. Todo o processo de escravidão foi legalizado e institucionalizado, sustentado por ideias econômicas e racistas que viam os negros como uma fonte de lucro essencial para a coroa e os colonos.
Com isso, arrancados da África, trazidos à força para o Brasil, estes homens e mulheres foram obrigados a adotar a fé do colonizador. Entretanto, ainda que com muitas dificuldades e privações, muitos povos e grupos de pessoas escravizadas procuraram manter sua tradição e cultura religiosa intactas. Como o povo escravizado recebia a religião cristã compulsoriamente, era necessário esconder ou disfarçar suas práticas religiosas.
Embora estivessem misturados em grupos étnicos variados, os africanos, apesar dos sofrimentos e das sevícias de que eram vítimas, buscaram – de forma consciente ou inconsciente – soluções práticas para resolverem problemas cotidianos, como o exercício de seus rituais religiosos.
O movimento de resistência negra para manutenção de sua Fé, se deu por meio do chamado sincretismo religioso.
No Brasil Colônia, os IORUBÁS foram escravizados – grupo étnico linguístico originário da região ocidental da África – e precisaram usar estratégias de sobrevivência para manter vivo o culto aos orixás. Para disfarçar seus ritos, que, como já falado anteriormente, eram proibidos pelo cristianismo, estes povos de origem iorubá, associaram as entidades africanas às imagens cristãs. (Outros povos africanos escravizados, como os BANTUS & JEJES, enfrentaram também a repressão religiosa imposta pelo movimento cristão, tendo também, que se utilizar de práticas semelhantes para que mantivessem suas crenças vivas.)
Foi assim que, por exemplo, Iemanjá acabou sendo “associada” com uma outra figura também chamada de “Mãe de Todos”: a Virgem Maria. Nesse processo de fusão entre crenças, a Rainha do Mar também é associada a Nossa Senhora dos Navegantes e a Nossa Senhora das Candeias. Mas, tendo o racismo como efeito sistêmico, Iemanjá foi ganhando uma imagem de mulher branca, dissociada de sua raiz negra.
Esse embranquecimento é evidente também em outras esferas da sociedade brasileira. Essa forma de traduzir dois mundos religiosos distintos ajudou-os a manter viva suas tradições religiosas ancestrais, ainda que mescladas com o sistema hagiológico católico.
Aqui vale ressaltar o papel do racismo enquanto ferramenta de desmantelo cognitivo, intelectual e cultural. Para tomarmos nota, a criminalização da cultura negra no Brasil gerou um impacto imenso na população afrodescendente. A chamada demonização da cultura negra, em especial a sua fé, é um plano que vem se desenrolando ao longo dos anos.
Leis como o Código Penal de 1890 foram criadas para perseguir essas expressões culturais, associando-as à feitiçaria. Os dados, quando observados com a devida atenção, comprovam o que muitos magistrados e figuras importantes ligadas à pauta racial já afirmam: Há uma clara perseguição às pessoas, aos povos e comunidades de terreiro no Brasil. Um olhar preconceituoso e um julgamento antecipado, desprovido de qualquer conhecimento cultural ou acadêmico.
Ainda que o sincretismo religioso tenha permitido a preservação de práticas africanas, ele também é alvo de inúmeras críticas por parte de alguns estudiosos que consideram importante valorizar a pureza de suas tradições originais. Dessa forma, podemos afirmar que, buscando uma validação eurocêntrica, toda uma comunidade teve que, forçadamente, desapegar-se de suas crenças.
O colonizador, carregado de preconceito e pseudociência, buscou a estigmatização das religiões de matriz africana/indigena. Contudo, é possível dizer que a marginalização do povo preto está historicamente ligada ao processo de colonização, resultando em práticas preconceituosas, fruto direto do racismo estrutural. Na sociedade atual, muitos praticantes da religiosidade afro-brasileira, enfrentam restrições institucionais, tendo dificuldades para exercerem livremente sua fé, seja no ambiente de trabalho, na educação ou mesmo em espaços públicos.
A constante força dos povos de terreiro mostra que a luta por igualdade e justiça continua viva. Hoje, graças às políticas públicas afirmativas, as casas de Axé podem expressar sua fé e valorizar toda uma cultura ancestral, como é o caso do ILÊ IBÁ ASÈ KPÓSÚ AZIRI – localizado no bairro Rachel de Queiroz – Fortaleza. O terreiro, fundado no ano de 1975, cujo responsável atual é o Babalorixá Shell de Obaluaiê, é também uma associação cultural que promove um debate inter-religioso, buscando promover o respeito e a compreensão. Organizações como a ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MÍDIA AFRO e o Fórum NACIONAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL DOS POVOS DE MATRIZ AFRICANA tem atuado na defesa das comunidades de terreiro.
Religiões de matriz africana, como o Candomblé & Umbanda, nascem desse caldeirão cultural que se formou em solo brasileiro, e que, resistindo aos inúmeros solavancos ao longo dos anos, permanecem firmes e cada vez mais fortes. Esse espírito de firmeza é uma característica da sociedade brasileira como um todo. Hoje, a valorização da cultura negra ainda enfrenta desafios, mas avanços na legislação e no reconhecimento da história afro-brasileira ajudam a combater essa herança de criminalização. Nomes importantes como o de Zumbi dos Palmares, Tia Ciata, Mãe Menininha, Leci Brandão, Djamila Ribeiro, e tantos outros, são importantes para a continuação da afirmação cultural negra. A Religiosidade africana no Brasil é uma história de resistência, resiliência e luta por reconhecimento e respeito.