Corpos de metal e carne: minha descoberta do cyberpunk japonês com “Tetsuo”

Texto de Lucas Paiva, Mestre em Comunicação e jornalista com experiência em metodologia de pesquisa
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Se você, como eu, é apaixonado por cinema, tecnologia e pelas fronteiras do ser humano, essa trilogia precisa estar no seu radar / Foto: Divulgação

Durante minha jornada de pesquisa com cinema, uma das grandes descobertas foi a trilogia “Tetsuo”, do diretor japonês Shinya Tsukamoto. Uma obra que me arrebatou por sua potência estética e filosófica, especialmente quando pensamos nas fronteiras entre humano e máquina. Mergulhar nesse universo foi compreender o cyberpunk sob uma nova ótica — uma ótica profundamente japonesa, que vai muito além da perspectiva ocidental do subgênero.

A fusão radical entre homem e máquina

Enquanto o cyberpunk ocidental costuma se centrar em figuras como hackers, ciborgues e mega corporações, com uma estética marcada por implantes e o ciberespaço, “Tetsuo” leva essa mistura de homem e tecnologia a um novo patamar — um nível visceral, doloroso, sexual e perturbador.

Na trilogia, acompanhamos a transformação literal de corpos humanos em híbridos de carne e metal, numa jornada de mutação viral e descontrole absoluto. O primeiro filme, “Tetsuo: The Iron Man” (1989), começa com um simples acidente: um homem comum (Salaryman) atropela um estranho, o “Metal Fetishist”, e a partir daí seu corpo inicia uma metamorfose brutal, fundindo-se com ferro, cabos, máquinas. A metáfora do corpo humano invadido pela tecnologia ganha aqui uma dimensão física e grotesca, que vai muito além do visual — ela atinge a identidade, o desejo, a sexualidade.

O cyberpunk japonês e o corpo pós-humano

Essa abordagem encontra respaldo em conceitos contemporâneos, como o pós-humanismo, que repensa o corpo humano não mais apenas como carne, mas como parte de uma rede comunicacional, conectada a sistemas e máquinas. Em “Tetsuo”, o corpo não apenas se conecta à máquina: ele se torna máquina.

Diferente do cyberpunk americano, onde o humano ainda tenta preservar sua essência contra as máquinas (como em “Blade Runner” ou “Matrix”), o cinema de Tsukamoto rompe essas fronteiras: o ser humano se dissolve no híbrido, sem chance de retorno.

Mais do que estética: uma crítica social e existencial

Mas “Tetsuo” não é só um exercício de efeitos visuais ou grotesco pela estética. A obra carrega uma crítica profunda à sociedade industrial japonesa, com seus espaços urbanos sufocantes e o peso da modernidade. Como escreve o pesquisador Steven Brown (2010), há uma mistura de violência, erotismo e tecnologia que expressa o fetiche e o medo da integração homem-máquina, além de um questionamento sobre a identidade masculina e feminina em uma sociedade em transformação.

A sequência “Tetsuo: Body Hammer” (1992) e o mais recente “Tetsuo: Bullet Man” (2009) continuam esse universo, cada um trazendo novos elementos e aprofundando o dilema do corpo que se perde de si mesmo, fundido com armas, metais, e dor.

O olhar japonês sobre o cyberpunk

Para mim, o mais fascinante foi entender como o Japão criou um cyberpunk próprio, que dialoga com sua história — especialmente o trauma pós-guerra, as bombas nucleares, e a modernização forçada. Há uma aceitação quase torturante dessa fusão com a tecnologia, como se o país precisasse incorporar a máquina para sobreviver.

Tsukamoto, em entrevista, diz que, enquanto o cyberpunk ocidental fala de um “depois” da destruição das cidades, ele fala das cidades que ainda existem, mas já estão se desfazendo por dentro. Por isso, seu cyberpunk é urbano, cru, agressivo e emocional.

Por que “Tetsuo” ainda importa?

Em tempos de debates sobre inteligência artificial, próteses biônicas e corpos cada vez mais conectados, “Tetsuo” se mantém atual e necessário. Ele nos faz perguntar: até onde vai o humano? Onde começa (e termina) a máquina em nós? E será que esse limite ainda existe?

Assistir a “Tetsuo” é confrontar essas perguntas sem garantias de respostas, mas com a certeza de uma experiência cinematográfica única — um soco visual e filosófico que redefine o que entendemos por cyberpunk e pela própria condição humana.

Se você, como eu, é apaixonado por cinema, tecnologia e pelas fronteiras do ser humano, essa trilogia precisa estar no seu radar.

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