No neoliberalismo não há espaço para o desconforto

Texto de Noelle Siebra, psicóloga, apaixonada por cinema, música e cultura urbana
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“A percepção neoliberal de saúde mental parte da recusa do sintoma, do entendimento dele como o principal fator destrutivo para o sujeito, e não como aquilo que fala sobre as origens do desconforto, que denuncia” / Foto: Divulgação

Esses dias, assisti a um vídeo muito interessante de dois jovens adultos falando sobre como somos uma sociedade “hiperterapeutizada”, em que se questionam se essa característica se deve apenas ao fato de sermos uma geração de adultos mais “educados emocionalmente”. Somos, de fato, mais conscientes emocionalmente? Pode ser uma verdade, mas uma verdade que carrega em si todo um jogo de interesses, que parte da inibição dos sintomas, de um desconforto psíquico diante do mal capitalista.

Que mal é esse? É a alienação do trabalho, do nosso gênero humano. É a fetichização da mercadoria, a coisificação das nossas relações e de nós mesmos. O capitalismo é também o sistema que fabrica a miséria, que se constrói e se fortalece a cada dia graças às suas tentativas, cada vez mais refinadas, de desumanizar. Diante disso, como não sofrer? Como não se incomodar, não se angustiar, não deprimir, não sentir ansiedade e todos esses sintomas tão citados nos nossos índices de saúde mental atuais?

A percepção neoliberal de saúde mental parte da recusa do sintoma, do entendimento dele como o principal fator destrutivo para o sujeito, e não como aquilo que fala sobre as origens do desconforto, que denuncia. Mas isso não é um mero acaso: o mesmo sistema que nos gera tantas angústias é aquele que quer inibir nossos sintomas e exigir de nós malabarismos para manter uma estabilidade de funcionamento que não atrapalhe seu modo de produção. O capitalismo não dá ponto sem nó.

O sofrimento não é bem-vindo, porque ele desacelera a produtividade, assim como é inviável, numa sociedade neoliberal, permitir que certos funcionamentos sejam legitimados. Quando pensamos em diagnósticos em massa, por exemplo, chego sempre ao mesmo ponto: o capitalismo influencia nossos aspectos emocionais, cognitivos, afetivos, interpessoais, e tudo o que se possa considerar da experiência humana.

Outro fator importante sobre os diagnósticos é a expectativa de que todos “deem um jeito” nas suas questões para não perder o ritmo, para não sair do tom dessa orquestra regida pelo Capital. O que quero dizer é que vivemos de acordo com o ritmo que nos é imposto, com um modo de vida pré-fabricado. Enquanto a humanização trata da dignidade de vida, da possibilidade de, além das necessidades básicas, vivermos conforme nosso tempo, ritmo, funcionamento, necessidades e potencialidades, o neoliberalismo nos obriga a uma inversão ética, exigindo uma adaptação compulsória dos sujeitos e subjetividades às necessidades do sistema.

Constatar isso é motivo de desistência e fatalismo? Não. É combustível de luta — a luta pela necessidade humana de vivermos a partir de quem somos e do que queremos. É a luta por existir de acordo com o nosso próprio funcionamento, e não por tentarmos, incansavelmente, nos adaptar a um modo de vida não escolhido.

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