
Sempre fui muito apegada às sensações que a arte me mobiliza, e no quão maluca essa arte pode ser. Ao assistir um filme de David Lynch, por exemplo, que subverte toda a lógica, ordem e racionalidade, que potencializa elementos subjetivos atrelados a tudo aquilo que temos menos contato em nós mesmos, a música experimental desafia a norma estabelecida, ultrapassando limites e explorando de forma livre e criativa o seu próprio gênero. Os sons e técnicas utilizadas não são convencionais. E isso sempre me brilha os olhos.
O funk é por si um movimento cultural contra hegemônico, feito por e para grupos sociais marginalizados. Considerando quem o produz e quem o consome, o funk é subestimado em seu valor artístico e social. Como considerar arte aquilo que contraria esteticamente, sonoramente e politicamente tudo aquilo que produz artisticamente a classe dominante? Trazendo elementos da música eletrônica, o DJ K, nascido e criado na zona sul de São Paulo, lança o álbum “pânico no submundo”, em pleno contexto pandêmico, com referências diretas à oposição do governo bolsonarista, abriu caminhos para a efervescência do funk bruxaria. Posteriormente, importantes artistas mostram seus trabalhos experimentais e corajosos, tocando em bailes de favela e mundo afora.
“Não tem como brecar o baile”
Segundo DJ Dayeh, socióloga, produtora musical e DJ, mesmo sendo o principal expoente do funk, os bailes acontecem na ilegalidade, sem segurança e sem equipamentos. Em bailes grandes, os moradores se juntam para levar o paredão automotivo, fechando as ruas. Afirma que mesmo com a proibição, “não dá pra brecar o baile”, que é o principal entretenimento dos moradores, e que movimenta cultura e arte dentro da própria favela. Tal consideração levanta um importante problemática, que é o difícil acesso de quem mora na favela aos eventos culturais do centro da cidade. Para ir até o rolê de lá, existe uma série de obstáculos; a distância geográfica, os custos (transporte e consumação mais caros na área central), o preconceito muitas vezes sofrido pela percepção racista e elitista que criminaliza os moradores das favelas, atrelando à periculosidade. Nos bailes, os frequentadores sofrem constante repressão policial, e bailes como o da DZ7 e do Helipa já terminaram em chacinas.

Os DJS Kenan e Kel fundaram a produtora 808, com o objetivo de democratizar o lazer e levar as periferias para ocupar o centro da cidade. Falam o seguinte: “Não queremos fazer nosso rolê em lugares afastados, queremos fazer festas em espaços de playboy, com uma boa estrutura de som, com bons bares e oferecer para nossa galera experiências de lazer dignas. Com isso mostramos para Campinas, que é uma cidade ainda muito elitizada, que o funk, a periferia, os pretos e a comunidade LGBTQIA+ também moram aqui”.
Mas afinal, como é essa bruxaria?
As vertentes do funk em São Paulo se dividem principalmente por região, considerando as especificidades sociais e culturais de cada zona. Segundo Thiago Souza, pesquisador de funk e professor da USP, enquanto na zona Norte o que predomina é o funk ritmado, em que o ritmo ganha mais destaque, com curta ressonância, fazendo com que haja uma percepção mais aguçada dos pontos rítmicos, sendo também mais dançante. É um estilo mais próximo do mainstream. Enquanto na zona Sul predomina a bruxaria, mais pesada e barulhenta, composta normalmente por: um sample (trecho de alguma música já existente, robótica e aguda), assovio (bem agudo) e uma diversidade de elementos agudos e estourados. Assim como no metal, o uso de distorções é muito comum. Mas o que para muitos pode parecer “só barulho”, a bruxaria é um trabalho de montagem musical que permite explorar improváveis junções sonoras. A principal referência estética e sonora do funk bruxaria é o elemento do horror, principalmente sons de filmes e jogos, como gritos e risadas sinistras.
“A informação que a gente leva na bruxaria é um lado que é mais rave, mais eufórico, um lado musical mais contagiante. Porque a gente coloca muita informação dentro das músicas de bruxaria, ‘tuins’, samples de rock, samples mais finos, muita coisa repetitiva. Então, é como se fosse uma rave da favela, só que mais pesada. Uma rave com rock e um toque de funk. Essa é a bruxaria”, enfatiza DJ K.

A ideia do submundo – termo referenciado frequentemente no funk bruxaria, sendo nome de bailes, álbuns e músicas, tem relação, segundo os DJS do nicho, com o cenário social do lugar, sendo a região mais violenta da cidade. Portanto, é uma expressão artística que imprime a realidade objetiva e subjetiva dos moradores das favelas da zona sul. Existe uma marcante diferença também na postura dos frequentadores de bailes de bruxaria. Fala sobre a cara de marrento, dos movimentos de dança mais robóticos, com influências do break dance, enquanto é dançado com rebolados e sensualidade.
O funk bruxaria repercute em todo o Brasil, sendo tocado por DJS de funk e techno. Em Fortaleza, o DJ Dudu Ribeiro (DDZIN) é destaque no som da bruxaria, trazendo em seus sets muitos agudos, assovios e beat bolha (som aquático). Atua em três projetos de baile, o “baile do ddzin”, “numalaje” e “palosabaile”