O gari que morreu pelo lixo

Texto de Yuri Melo, publicitário, diretor, roteirista e crítico de cinema
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Laudemir de Souza Fernandes / Foto: Reprodução

Eram umas 8 da noite. Eu voltava da banca de jornal, onde tinha ido para comprar uma revista de palavras cruzadas ou alguns cigarros, não me lembro bem. Quando cheguei na esquina de casa, o caminhão do lixo estava fazendo a coleta do meu prédio. Tampei o nariz e continuei andando, enquanto os homens brilhavam na noite seca, tirando os sacos do chão e das cestas de lixo.  

Meu objetivo era chegar na portaria o mais rápido possível, afinal: quem que gosta de mau cheiro? Comecei a caminhar mais rápido, e os garis já pareciam estar terminando o serviço quando um deles jogou o último saco na caçamba do caminhão. Antes de ir subir na traseira e agarrar a haste de metal fixa, parou na minha frente, olhou no meu olho, e disse: 

– Moço, você pode me dar um real? 

Fiquei paralisado. Um real? Algo sobre aquele homem estar revirando lixo a noite toda, jogando sacos com Deus-sabe-o-quê na traseira de um caminhão sujo e velho, sob o risco de se cortar com pedaços de garrafa, espelhos e copos de vidro a qualquer momento, estar me pedindo dinheiro, me deixou sem reação. 

Lembro de ter tido o pensamento mais infantil que um rapaz de 20 e poucos anos e moderadamente politizado poderia ter naquele momento: “Como assim ele não tem um real?”. No fim das contas, tudo que eu pude fazer foi olhar ele no olho, acenar negativamente com a cabeça e dizer:

– Moço, desculpa, não tenho.

Eu não tinha mesmo. Ele me fez que sim com a cabeça, mas não falou nada. Só virou o corpo de volta pro caminhão num movimento só, subiu na traseira, pegou na barra metal, e foi embora. 

Mas porquê eu tô falando essa história toda?

Na última segunda-feira, dia 11 de agosto de 2025, o gari Laudemir de Souza Fernandes, de 44 anos de idade, foi assassinado a sangue-frio. O principal suspeito é o empresário Renê da Silva Nogueira Júnior, esposo da delegada Ana Paulo Balbino Nogueira. 

Diversas testemunhas oculares apontam Renê como autor dos disparos que mataram Laudemir, além de imagens de vídeo que também mostram o seu carro adentrando o local do crime. O empresário nega sua participação, mas segue em prisão preventiva.

De acordo com a motorista do caminhão de lixo, principal testemunha do ocorrido, Renê ficou irritado pois não conseguia passar com seu carro através do trecho bloqueado pelo caminhão. Ele ameaçou a motorista, dizendo:

– “Se você esbarrar no meu carro vou dar um tiro em você, duvida?”

Os coletores escutaram a ameaça de Renê e tentaram apaziguar a situação e, ao mesmo tempo, escancarar a absurdez de sua explosão temperamental. Um dos garis, Thiago, afirma tê-lo questionado:

– “Vai atirar? Vai matar a gente trabalhando?”.

Renê teria respondido de maneira prática: sacou a arma e efetuou pelo menos dois disparos contra Laudemir, que andou passos confusos para a esquina mais próxima, levou a mão ao peito, e sucumbiu ao chão. Ele morreu algumas horas depois, já no hospital. 

Laudemir deixou para trás uma esposa, amigos, colegas de trabalho, e como qualquer outro ser humano nesta terra, uma mãe – que estava viva e presente na sua rotina. Tinha também uma filha de 15 anos, que vai ter que lidar com o fato de ter perdido o próprio pai tão cedo e, ainda por cima, um dia depois do Dia dos Pais.

O empresário fugiu do local e foi preso algumas horas depois, na academia. De acordo com relatos, ele pareceu surpreso pela abordagem da polícia. Engraçado: a surpresa dele já não me surpreende. 

No momento, a polícia trabalha em uma investigação para confirmar a autoria do crime e o possível envolvimento da esposa de Renê – a quem a pistola utilizada no assassínio provavelmente pertence. 

No enterro de Laudemir, seus amigos, colegas de trabalho e familiares choravam e o aplaudiam, todos vestidos com o típico uniforme laranja utilizado pelos garis da cidade de Belo Horizonte. Os familiares, entre lágrimas, afirmavam que Laudemir (mais conhecido como “Lau”) era um homem querido, simpático e que amava o seu trabalho. 

– “Ele trabalhava muito pra fazer mais dinheiro, mas sempre voltava morrendo de saudade pra casa” – um dos familiares afirmou. 

Acima do caixão onde jazia o corpo de Laudemir, uma faixa em preto-e-branco, erguida pelos companheiros da vítima, lia:

“SOMOS GARIS, NÃO SOMOS LIXO”

Enquanto isso, no perfil de Renê nas redes sociais, ele se apresenta com a seguinte descrição (em inglês mesmo, por algum motivo bizarro):

“Christian, husband, father, and patriot” 

(em português: Cristão, esposo, pai, e patriota)

Renê da Silva Nogueira Júnior / Foto: Reprodução

Observe: um patriota se apresentando em inglês. Mas quem dera fosse esta a única hipocrisia de Renê, o homem que agora encara uma cela sem aplausos, silenciosa, úmida, e, esperançosamente, fria.

A imagem de moço boa-pinta e bem-sucedido do empresário era cultivada nas redes através de fotos com filtros exacerbados, que acentuavam seus músculos e mascaravam sua aparência debilitada. Quando foi preso, sua aparência era outra. Irônico? Talvez, antes não fosse condizente. 

Levando em conta sua apresentação virtual para o mundo, indaguemos: o que houve de cristão na ação de Renê? E sua mulher, de fato o colocou em posse de uma arma de fogo mesmo sem ele estar autorizado a fazê-lo? Sua filha, o que vai pensar da ação do pai uma vez que for madura o suficiente pra colocar os pingos no is? Qual é a cara do Brasil depois de um homem ter assassinado um trabalhador inocente, a sangue-frio, no meio da rua, enquanto a vítima catava lixo? Talvez, tristemente, a mesma que sempre teve?

Dada a harmonia infeliz entre as ações e os envolvidos, o que mais assombra é que:

Depois de 9 anos trabalhando com o que amava, Laudemir foi assassinado no meio da rua antes de poder voltar pra casa após um longo expediente e abraçar sua família. Privado do prazer mais simples condigno de qualquer homem, Laudemir de Souza Fernandes, de 44 anos, foi morto da pior e mais infamiliar forma possível: pelo lixo. 

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