“Ogros têm camadas, Burro”

Texto de Yuri Melo, publicitário, diretor, roteirista e crítico de cinema
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“Tu que é fi do Tico?” e depois de confirmada a dúvida, soltarem uma estória onde o dito cujo era o salvador da pátria. “Me ajudou demais ele, homi.” Admito que por muito tempo isso me deixava com uma pulga atrás da orelha: “Ele? Meu Tony Soprano?” / Foto: Divulgação

Meu pai estava ali em pé, à minha frente, com um dos cotovelos apoiados no balcão da cozinha. Tinha 58 anos. Apesar de ter pouco cabelo, ainda era um homem bonito para a idade. Tinha um queixo pontudo, e as maçãs do rosto cor de oliva eram delicadas e estreitas. Os olhos eram discretos como os de um bicho-preguiça, mas eram de um negro notável, e brilhavam sempre que falava; seja com amor, seja com ódio. O torso parecia o de um gorila velho, mas ainda robusto, fazendo com que seus braços parecessem finos demais em relação ao resto do corpo. Já as mãos eram grossas e inegavelmente masculinas, grisalhas como seus (poucos) fios de cabelo. Vestia uma blusa social roxa com preta ornada com listras discretas, e uma calça jeans azul marinho da Stalker. Seu uniforme típico de trabalho.

Gesticulava enquanto falava. E gostava de deixar uma pausa de ao menos dois segundos depois de cada frase, como que para apreciar a própria perspicácia e abrir espaço para que eu fizesse o mesmo. Vendo-o falar ali, lembro de ter pensado em só ter visto o mesmo nível de charme em figuras como Tony Soprano; um símbolo paterno distorcido para todo mundo que tenha visto “Os Sopranos” durante a adolescência – quer queiram ou não. Sempre achei que meu pai lembrava muito ele. Suas sessões de terapia definitivamente seriam tão interessantes quanto as do icônico mafioso anti-herói.

Eu estava mal e ele tentava me confortar com uma anedota. Contava uma história que em termos literais já era engajante o suficiente, mas que também tinha valor metafórico pra minha atual situação – algo que eu também adoraria fazer. Eu podia saber pouco sobre o homem, mas não tinha dúvidas de que ele sabia como contar uma história. Talvez porque gostasse tanto delas. Afinal, tive a quem puxar minha paixão pelos filmes e pelos livros. E pelo total silêncio inerente ao proveito de ambas as atividades.

Lembro de uma história contada pela minha tia, sua irmã, onde ele era o protagonista. Na adolescência, chateado pelo status financeiro limitado da família, resolveu tomar uma iniciativa. Passou a dar aulas para o MOBRAL, à época, o programa de alfabetização implementado durante o governo da ditadura militar.

Durante muito tempo, foi um menino de interior dando aula para adultos e, por vezes, idosos, que haviam passado uma vida manejando enxadas ao invés de abrirem livros. Gente que foi condicionada a sobreviver ao invés de aprender. Passou muito tempo mudando esse formato. Lembro de ter pensado que era a coisa mais digna que um homem poderia fazer – mesmo que fosse só pelo dinheiro. 

Assim era o jeito que eu ficava sabendo de todas as suas benfeitorias: pelos outros. O homem nunca se gabava de nada; só reclamava. Era rabugento, isso não tinha como negar – mas também adorava ajudar os outros. Já havia perdido as contas de quantas pessoas haviam chegado em mim e perguntando “Tu que é fi do Tico?” e depois de confirmada a dúvida, soltarem uma estória onde o dito cujo era o salvador da pátria. “Me ajudou demais ele, homi.” Admito que por muito tempo isso me deixava com uma pulga atrás da orelha: “Ele? Meu Tony Soprano?”

Enquanto ele se sentava na mesa pra continuar a história de peso metafórico que já iria emendar em outra de mesmo teor, eu me dei conta de que, apesar dos apesares, nada o obrigava a estar ali, tentando me ajudar fazendo o que por muito tempo achei que sabia fazer de melhor: contando uma história. Não havia abraços ou beijos, nem eu te amos e orgulhos atrasados. Só dois homens sentados, conversando. E naquele momento, pareceu ser o suficiente. 

“Engraçado”, eu pensei.

Um dia vou ser eu chegando em alguém e falando:

“Sabia que teve um dia que o Tico me salvou?”.

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