
O relógio dita os passos: 7 horas, tomar banho. 8 horas, café da manhã. 9 horas, sair de casa. 10, chegar ao trabalho. Atrasou, era para ser às 9h30. A desculpa? “Ônibus deu prego”. No dia seguinte, o desconto vem. Segue a rotina: até às 18 horas, depois estende às 20 horas, porque sempre cabe mais. Às 22 horas, sai do trabalho. Meia-noite, metrô. Duas da manhã, casa. Conversa com a família? Fica para depois, amanhã tem mais.
Com mais de uma década de circulação, “Pedro, que horas são?”, do Coletivo Paralelo, grupo natural de Maracanaú, cidade da região metropolitana de Fortaleza, ancora esse ritmo sufocante. Em cena, Pedro (Neto Holanda) e Abu (Igor Cândido) dão corpo a uma caricatura do ser humano moderno, aprisionado pela lógica do tempo e pela cobrança incessante do cotidiano. Através da união entre elementos do teatro e da palhaçaria, os atores, que também são os dramaturgos da peça, provocam a plateia a pensar: até que ponto vale a autocobrança e o esforço excessivo em nome de uma suposta qualidade de vida?
Refletir sobre a longevidade do espetáculo torna sua escolha temática ainda mais instigante: abordar saúde mental em um período em que o assunto ainda não tinha a visibilidade de hoje. É nesse contexto que surge o fictício “Mal de Pallal”, doença que impede Pedro de se ajustar ao tempo cronológico e o lança em um turbilhão de tarefas e expectativas em nome do sucesso. A explicação da patologia é conduzida com humor, marcada por detalhes quase burocráticos — o ano exato da descoberta, o nome do biólogo, a previsão de expansão dos casos — que acentuam a ironia e reforçam a crítica à mecanização da vida cotidiana.

Mesclando humor e crítica, o enredo acompanha Pedro desde os primeiros indícios do distúrbio e suas implicações nos relacionamentos pessoais e com o mundo externo. A presença de Abu em cena aparece mais do que um narrador, e sim uma outra extensão física da mente desse personagem, tal qual aquela voz que sussurra na mente, gerando crises de ansiedade e de auto cobrança.
A estética do espetáculo é minimalista: poucos objetos em cena, toalhas e uma estrutura móvel que se transforma junto com a narrativa. A simplicidade, no entanto, não significa pobreza narrativa, pelo contrário, cada elemento cumpre uma função dramatúrgica, adquirindo novos sentidos à medida que a história avança. Em uma análise abstrata, poderia dizer que todos esses elementos funcionam como uma materialização da mente de Pedro (e a prova disso é quando a parede repleta de relógios se revela, tornando visível o caos interno que o consome).
Consequentemente, a atenção dedicada a envolver o público na cena — seja por meio das reações às correrias dos personagens, seja pela participação física no palco — transforma a história em uma extensão da própria plateia, que a acompanha e alimenta. A experiência torna-se, assim, uma conversa franca sobre o lugar em que estamos e os caminhos que podemos seguir. Nesse processo, talvez o reflexo mais evidente dessa conexão seja o riso. Tudo isso também contribui para ampliar o debate sobre as formas de expressão da palhaçaria para além do universo circense, revelando como essa linguagem habita o interior de cada indivíduo.
Tecnicamente, a atmosfera ganha força com a iluminação de João Lucas Vieira e a sonoplastia inventiva de Venicius Gomes, que juntos constroem texturas visuais e sonoras capazes de ampliar a experiência do público para além do que está em cena. A alternância de cores, sobretudo entre os tons frios de azul e o branco intenso, dialoga com o teclado que tanto cria melodias quanto reproduz sons do cotidiano, como o toque de um celular e a batida de um tambor.
Em resumo, depois de mais de uma década em circulação por festivais dentro e fora do Ceará, assistir a “Pedro, que horas são?” no Teatro Dragão do Mar, em Fortaleza, durante a celebração dos onze anos do Coletivo Paralelo, é testemunhar um gesto de resistência de uma cena artística que pulsa para além da capital e insiste em falar sobre as urgências do nosso tempo.
Se, originalmente, o espetáculo encerrava em tom dramático, desta vez o final foi de celebração. Essa escolha não apenas despertou a curiosidade sobre como a trama se desenrola em sua forma original, mas também reforçou o presente que é ter artistas como esses compondo a cena local, sendo capazes de renovar os sentidos a cada apresentação. Ao fim, a peça deixa um lembrete contundente: é preciso cuidar, preservar e escutar o “Pedro” que habita em cada um.