
Nesta ainda breve trajetória como jornalista e pesquisador musical, tive a oportunidade de entrevistar alguns dos maiores músicos do país. Entre talentos consagrados e vozes celebradas, uma ideia se repetia em diferentes conversas: “meu estudo é diário, todos os dias busco novos sons nas cordas, nos sopros, nos timbres”. Mas o que dizer, então, de um compositor que descobre em si mesmo a própria ressonância?
Este foi o caso de Hermeto Pascoal, gênio da orquestração e do cancioneiro do Brasil. O artista faleceu no último sábado, dia 13, deixando uma lacuna que dificilmente será preenchida. Seu magnetismo pela “invencionice” o libertou de qualquer pudor diante da linearidade de acordes e ritmos, projetando o país para o que Caetano Veloso nomeou de “Hermetismos Pascoais”.
Com uma vida longa e uma carreira ainda mais vasta, o músico que desde cedo sentiu o peso da exclusão — vítima de preconceito por ser albino e de limitações visuais provocadas pelo estrabismo — transformou as adversidades em uma forma única de enxergar o mundo: mais plural, colorido, variável e mágico. Seu poder, somado às longas madeixas brancas, o fez bruxo da música popular brasileira.

Singelo no riso e afável no humor, mas imponente no palco: diante dele, todos sabiam estar frente a um alquimista dos sons — e isso é raro. Até mesmo Elis Regina se intimidou. Em Montreux, no dia 20 de julho de 1979, os dois dividiram palco em duelo velado. Hermeto, desafiando acordes, testou até onde Elis poderia acompanhá-lo sem tropeços técnicos e sem perder o coração. Temendo a vaia, a Pimentinha preferiu não arriscar: cantou canções já conhecidas, entre elas a “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, música que detestava e havia jurado jamais interpretar.
Hermeto foi singelo e potente. Lançou álbuns antológicos como Sambrasa Trio (1965), Hermeto (1972), A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973), Zabumbê-bum-á (1979), Festa dos Deuses (1992), Mundo Verde Esperança (2002), No Mundo dos Sons (2017) e, por fim, Pra você, Ilza, dedicado à esposa. Mas sua grandeza estava sobretudo nos improvisos. Latas, bonecos, plantas, pedras — nada escapava às suas mãos. Era como se anunciasse a música do porvir: aquela feita com o que restasse depois do apocalipse.
Descobrindo sons com braços, pernas, dedos, cabelos, Hermeto surgia como uma criança que tateia o próprio corpo para se reconhecer ou como um adolescente que busca, incansável, os gozos da vida. Para ele, a religião era a música; hoje sabemos que a religião de muitos músicos chama-se Hermeto Pascoal.
Viva o eterno bruxo.