
Vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes e escolhido para abrir a 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Sirât, novo filme de Oliver Laxe, é uma daquelas experiências que transcendem a definição clássica de cinema.
Tive a sorte (ou talvez o privilégio) de assisti-lo em Cannes, na primeira exibição do filme. Confesso que estava exausto, na última sessão do meu primeiro dia. Eram 23h, a sala lotada, sentei na lateral direita, no meio da sala. E mesmo assim, Sirât foi além de tudo que eu esperava.
Sem trailer, sem pôster, sem alarde. Foi entrando na minha cabeça pela potência do som, pelas cores vivas e pela construção gradual de uma jornada que começou pequena e terminou inacreditavelmente épica.

A trama, a princípio simples, acompanha um pai e seu filho em busca da filha desaparecida. O ponto de partida é uma rave no meio do deserto marroquino. O destino, outra rave, ainda mais distante. Entre um lugar e outro, o filme se transforma: vira road movie, vira western eletrônico, vira um sonho febril no melhor estilo Gaspar Noé, só que mais contido, mais contemplativo, e paradoxalmente mais explosivo.
As referências estão lá: Mad Max pelo cenário e pela aridez moral; Climax pela trilha e pela energia pulsante; e 2001: Uma Odisseia no Espaço pelos momentos em que o som, a imagem e o mistério se condensam em algo maior. Um dos momentos mais simbólicos é quando surgem caixas de som colossais no meio do nada, um paredão de grave que lembra o monólito de Kubrick. Mas se lá o objeto anunciava o nascimento de algo novo, aqui ele parece selar um fim.
O filme avança sem pressa, mas nunca sem intensidade. Há ação, erotismo, suspense, e, acima de tudo, uma estranha melancolia. Uma cena envolvendo um barranco e o filho do protagonista, por exemplo, arrancou reações genuinamente físicas da plateia: suspiros altos, risos nervosos, olhos cobertos por mãos trêmulas. Em Cannes, onde o silêncio geralmente impera, isso é quase uma revolução, devo confessar.
Mas Laxe não está interessado apenas no delírio coletivo. Em Sirât, ele traça uma crítica clara às estruturas sociais e políticas: de um lado, uma polícia obediente a um governo autoritário; do outro, jovens que encontram na música não apenas prazer, mas resistência, busca, fuga. O clímax, violento, imprevisível e devastador, costura essa tensão de forma nada didática, mas visceral.
É curioso como Sirât, que em árabe significa “ponte sobre o inferno”, se constrói ao mesmo tempo como uma jornada física e espiritual. Ao final, o horizonte permanece, mas parece deserto. Existe algo além? Talvez. Mas, na visão de Laxe, não aqui. Quanto a mim, já se passaram quase seis meses desde que saí da sessão — mas ela, de algum modo, ainda não saiu de mim.
Filme visto na cobertura do Festival de Cannes 2025