Entre plumas e batidas: quando o Boom Bap encontra a literatura

Texto de Beatriz Ellen, graduanda em Letras e escritora independente
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Quando o Boom Bap encontra a Literatura, algo extraordinário acontece / Foto: Beatriz Ellen

O Boom Bap chegou ao Brasil como um subgênero do rap nacional em meados dos anos 1990 e 2000, sendo importante e bastante valorizado por grandes nomes, como o grupo Racionais MC’s, Sabotage e MV Bill. Esse estilo musical é caracterizado por dois sons distintos: o “boom”, que representa o som grave do bumbo, e o “bap”, que vem da batida aguda da caixa.

As batidas são acompanhadas por letras conscientes e/ou poéticas, abordando com frequência temáticas urgentes — do racismo à violência policial, estendendo-se à desigualdade social.

Esse estilo musical tem sua origem no cenário underground, fortalecido pelas batalhas de rima, que são extremamente importantes para representar o compromisso com a verdadeira essência do rap e com as tradições do seu meio artístico e cultural.

Por isso, é de grande beleza poder relembrar um dos nomes mais relevantes do rap nacional na atualidade: Murillo Fellipe, mais conhecido como Murica, também integrante do Puro Suco, grupo brasiliense de rap tropicalista. Poeta e artista musical, Murica se aproxima do Boom Bap com seus beats crus — ou “sujos”, como os chama —, suas letras potentes e seus flows e métricas recheados de densidade poética e força no microfone, capazes de abrir caminho para o foco e a escuta detalhada das próprias palavras que compõem as rimas.

Quando o Boom Bap encontra a Literatura, algo extraordinário acontece: o nascimento de uma arte rica e visceral, em que a poesia marginal, a crítica social e o entusiasmo se misturam ao ritmo cru da batida. Assim, Murica torna-se poeta urbano ao escolher métricas, rimas, metáforas e figuras de linguagem em suas composições.

O cotidiano da periferia encontra espaço digno nas rimas do artista, que, diversas vezes, constrói crônicas das ruas para atribuir novos significados às palavras — como armas e escudos. É aí que a Literatura entra e desfila pelo tapete vermelho: o Boom Bap como suporte sonoro ideal da palavra, pois a letra salta no beat diretamente, e a batida propõe ritmo e dinamismo ao texto falado, justamente pela proximidade com uma literatura oral que contempla as vivências das ruas e seus anseios.

Nessas ruas de encruzilhadas, o rap nacional e a Literatura constroem uma bela e apaixonada amizade. O artista latino-americano faz questão de lembrar e reconhecer suas referências literárias ao compor e cantar seus versos na canção “Daria um Livro”, na qual cita Clarice Lispector e Ferréz, ambos escritores brasileiros:

“Viver pra arte ou viver da arte

Criar meu filho, plantar uma árvore

Compor um disco, ler jardinagem

Roubar um banco, daria um livro

E aí tô com um bagulhinho novo aí, era quantas?

Tô com Clarice Lispector aqui a 25 reais pra você, meu parceiro

Ferréz a 20 reais, valeu?”

Parece que Murica se identifica mesmo com a estrangeira Clarice, citada mais uma vez nos versos da canção “V!sh”:

“Não vai pra grupo não, eu sei disso

A liberdade é mei que um feitiço

Uma escolha, uma renúncia, chapa, caminho do meio

Um rasta foi o silêncio que me disse

Cuidado que a vida é soco na barriga

Já dizia Clarice.”

O rapper também lê e se inspira em grandes nomes da Literatura Brasileira como Paulo Leminski, Edson Marques, Carlos Drummond de Andrade e Augusto dos Anjos. Sua proposta é reduzir o protagonismo gringo no rap, algo que aparece novamente na faixa “Cascavel”, iniciada com o poema “Mude”, do poeta Edson Marques. Em seguida, o texto se transforma em um Boom Bap potente e, ao mesmo tempo, sofisticado, a partir dos versos:

“Mude

Mas comece devagar

Porque a direção é mais importante que a velocidade

Sente-se em outra cadeira

Dê os seus sapatos velhos

Procure andar descalço alguns dias.”

E como não afirmar que o Boom Bap e a Literatura são um par perfeito? Quando a poesia é abraçada e agraciada pela batida, e, junto a elas, as narrativas construídas pelo poeta, temos nada mais, nada menos que a singularidade da vivência das ruas e dos encontros das palavras nas esquinas.

Esse encontro é, sobretudo, a Maracutaia, a Fome, a Sede e o que restou da Marginália, em forma, vida e alma latino-americana, entre plumas e batidas, mesmo com gambiarras.

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