
Joachim Trier apareceu para mim quando, no X (o eterno Twitter), um colega cinéfilo recomendou A Pior Pessoa do Mundo, o longa de 2021 que me conquistou imediatamente pela forma sensível e inventiva de filmar. O diretor transita com maestria entre momentos naturalistas e incursões fantasiosas totalmente disruptivas. Além disso, retrata a vida millennial com uma sinceridade rara, algo que me marcou profundamente e fez do filme um dos meus favoritos daquele ano.
Com seu novo longa, muito bem recebido em Cannes, minha expectativa já estava alta desde o anúncio. Evitei ao máximo informações sobre a trama porque queria chegar “virgem” ao filme (a melhor escolha possível). Essa abordagem de se manter sem pré-conceitos reflete, de certo modo, o próprio tema central de Trier: a descoberta do íntimo e a forma como cada experiência transforma o indivíduo.
Dito isso, Valor Sentimental acompanha o conturbado relacionamento entre um pai e suas duas filhas, revelando feridas complexas que atravessam décadas dentro dessa família. No centro do drama está Gustav, um pai distante e outrora renomado diretor de cinema. Fragilizado por seus próprios fantasmas, ele decide que seu próximo filme será seu grande retorno à cena. Por reconhecer o peso pessoal desse projeto, oferece à filha Nora, uma atriz de teatro já estabelecida, o papel principal. Após sua recusa, Gustav entrega o papel a Rachel Kemp (Elle Fanning), uma jovem estrela de Hollywood que rapidamente percebe ter sido inserida, sem querer, no núcleo de um drama profundamente íntimo, dentro e fora das telas. Assim, as irmãs precisam lidar com as relações atravessadas com o pai, enquanto uma atriz americana se torna o epicentro dessa dinâmica.

Felizmente, o filme trabalha com camadas que sempre me encantaram. Sua narrativa sobre artistas e indústria pode parecer inicialmente cínica, mas Trier aposta no lado mais íntimo do “fazer arte”. Ele reflete sobre a relação entre criadores e suas obras, criadores e seu entorno e, sobretudo, criadores e suas próprias vidas. Essa reflexão se conecta diretamente à estrutura da história, onde o cinema dentro do cinema se torna um espelho para os personagens confrontarem suas próprias feridas e escolhas.
Um filme, para nós, chega como produto final: algo aparentemente “resolvido”, com início, meio e fim. E muitas vezes projetamos essa expectativa de resolução no próprio criador, como se quem conta a história estivesse acima de conflitos e contradições. Em tempos em que o artista é cobrado não apenas por sua obra, mas por ser um baluarte moral, essa desumanização é ainda mais evidente. Em Valor Sentimental, porém, Trier subverte essa ideia: o filme dentro do filme não é o produto final, é o meio. É o dispositivo que permite aos personagens encararem traumas que os definem.
A dor do pai, que ele não sabe processar, reverbera nas filhas; e o cinema surge como a única linguagem capaz de traduzir sentimentos tão complexos. A arte, aqui, é manufatura emocional, uma tentativa de conexão metafísica entre pessoas que não conseguem dizer tudo em palavras. Ao mesmo tempo, o longa sugere uma crítica ao pensamento reducionista de que a arte estaria se tornando “despersonalizada”, especialmente diante dos debates sobre IA no processo criativo.
Há uma frase marcante dita por Gustav: “A equipe de produção de um filme é uma família”. Mas sua habilidade de se comunicar artisticamente não se reflete em sua incapacidade de criar laços com sua família de sangue, que ele abandonou. O filme não economiza em mostrar a complexidade dessa tríade: como cada um lida com seus traumas individuais, moldados tanto por experiências pessoais quanto por questões sociais. Afinal, sendo um filme norueguês, há elementos profundamente europeus permeando essas relações.
Além disso, Trier cria uma dinâmica de “duplo” brilhante com a personagem de Elle Fanning, evocando diretamente Persona, de Bergman. Há inclusive comentários afiados (e hilários) sobre a indústria cinematográfica – é quase assustadora a coincidência da compra da Warner Bros. pela Netflix e o debate sobre o futuro das salas de cinema, tópico que surge quando Gustav é perguntado sobre o lançamento de seu filme. Essa tensão entre criação artística e mercado cinematográfico reforça o tema central de Trier: a arte como processo de reflexão, cura e transformação, não apenas como produto final.
Por fim, Valor Sentimental é um filme lindíssimo, que entende o cinema não apenas como produto final, mas como processo – uma forma de terapia, de enfrentamento dos dilemas mais profundos. Que não nos esqueçamos: fazer arte não é apenas o que vemos na tela. A verdadeira poesia está nos espaços entre os frames, naquilo que nos toca de forma invisível, fruto do trabalho de inúmeros artistas.












