
13 de fevereiro de 2025, quinta-feira, dia de jogar no mundo mais uma escrita e de deixá-la andar. Porém, hoje também marca o fim de longos 6 meses regados de luto e de luta. Luto pelo Sr. Gilberto, luta de Beatriz. Pai e filha. Um homem livre, agora livro. Uma mulher que fez de um livro a sua forma de ser livre. Para entender melhor isso tudo, preciso adiantar que este texto tem cores, cenários e personagens. Como tantas escritas por aí, também tem dor e fim.
O Dia dos Pais de 2024 foi diferente para a Bia e o tio Gilberto (o chamarei de tio porque tive o privilégio de conhecê-lo e de tomar do seu açaí). Era o primeiro em que os separava uma distância exata: 1.688,93 km. Ela, em Brasília. Ele, em Itapajé, no Ceará. Mas a Bia, que tem o dom de transformar sentimentos em matéria, decidiu encurtar essa distância com palavras. Escreveu uma homenagem ao pai. Começou com um doce e forte “bença, pai” e costurou lembranças em imagens: as fotos da infância, o café no fogão, o caminho de casa, a escolha de uma canção. Juntou tudo em um vídeo, lançou ao mundo e recebeu uma chuva de comentários. O mais aguardado veio direto de uma chamada de vídeo. Era tio Gilberto mandando notícias e dizendo que adorou a homenagem. A conversa durou o tempo possível. Ali, a tecnologia chegou ao seu limite. Dali, ela não conseguiria mais unir os dois.
Tio Gilberto faleceu dois dias depois.

A morte assume diferentes formas — no Egito, a eternidade; na Grécia, um rio. No Japão, uma chama; no México, uma festa. Em Itapajé, silêncio. Em Brasília, dor. Independentemente da cultura ou do lugar, o homem é o único ser que carrega a consciência da própria finitude. Ele sofre não apenas no presente, mas também no passado e no futuro, quase sempre perdido, questionando o sentido de existir. O que eu sei é que a finitude da vida é a única certeza que temos. Mas a Bia tinha outra, tão implacável quanto a primeira: dali em diante, nada seria igual. Um pai voou como um pássaro. Uma filha, passarinha, com voz doce e aveludada como a de um bem-te-vi, não conseguia mais cantar. Como se livrar de uma memória trançada nas cordas vocais? Até que o azul do céu — o mesmo que agora abraçava o novo morador e combinava com a cor da roupa que ele usava na viagem — e a voz de Bia se uniram. Proporcionaram um novo voo, uma nova andança: o surgimento do projeto para o livro “Bença, pai”.
Se não podia cantar, ela gritou. Bia escreveu inúmeras cartas para o céu, na tentativa de reduzir a distância entre ela e o pai a poucos quilômetros. Curioso é que, aos poucos, justamente algumas palavras pareciam tentar remontar o chão recém perdido. Além de chão, criaram um palco. O trecho de uma das cartas descreve o primeiro espetáculo desde então: o encontro entre as duas potências tão temidas: “Eu acredito muito que quando a dor encontra o amor, ela para, olha no fundo dos olhos e o respeita. A dor se reconhece como menor. Senta numa cadeira ao lado e faz companhia, sabendo que o amor ocupa mais espaço.” Assim, o grito se materializou. Um conjunto de cartas-socorro virou livro. Virou uma declaração de amor não entregue.
E foi assim que Itapajé, no dia 1º de fevereiro deste ano, viu a força da literatura florescer em seu solo tão fértil. O lançamento de um livro expandiu a dimensão de um personagem, filho da terra, conhecido por uma cidade inteira. Para muitos, foi a primeira leitura de suas vidas — e que estreia imensa: ler o que se viu, reconhecer-se em algumas linhas. Fortaleza já recebeu esse livro. Agora, Brasília será a sortuda. “Bença, pai” é um gesto de amor que ecoa. Ao entregar essas cartas ao mundo, Bia se torna uma amiga, um colo, uma potência. Nos ensina que amar também é compartilhar, mesmo aquilo que, por instinto, queremos guardar só para nós, como quem esconde na gaveta o que mais ama, protegendo do mundo. E assim, seu pai, que já foi farol de uma família, agora é anjo, pássaro e lembrança terna para tantas outras. O título do livro, tão nitidamente cearense, nos lembra da grandeza das presenças, da beleza de honrar histórias e da coragem de quem decide se lançar na própria dor e transformá-la em arte. No fim, é isso que fica: a saudade, que Bia descreve como “o azar de quem tem muita sorte”, e a certeza de que a verdadeira bênção é amar — sem silêncios, sem distâncias, sem fim.
A bença.


