
Decidi escrever sobre esse tema a partir de um lugar de muita revolta, de anos de incômodo, desconforto, e de me sentir “reclamona demais”.
Honestamente, falarei sempre que sentir necessidade e vontade, e hoje tenho a convicção de que é através da fala que sigo em frente, em vez de me paralisar ou me manter alienada. Minha raiva em relação a representação das mulheres no cinema é bem antiga, especialmente no que diz respeito à exploração do corpo feminino para o prazer masculino.
Me cansa ver as dezenas de cenas “desiguais” em que os atores homens são quase sempre preservados em relação aos seus corpos, enquanto a nudez feminina é absurdamente banalizada, bem como a desigualdade nas cenas de sexo, quase sempre focadas em expor o corpo feminino com intuito de provocar o prazer em quem assiste. Me intrigo genuinamente com essa questão… o prazer é de quem? Dos personagens? Dos homens que assistem?

Para os que confundem todo esse sentimento de indignação com moralismo, digo que vocês não entenderam absolutamente nada, e que estão caindo perfeitamente na armadilha neoliberal da pseudoliberdade sexual das mulheres e da pseudosubversão da arte.
A maneira como as mulheres são representadas no cinema, principalmente em relação à hiper sexualização, insistente nas produções majoritariamente masculinas. Não significa liberdade para nós, muito menos significa que tal obra é revolucionária e subversiva. É nada mais nada menos do que a reprodução da lógica do prazer visual a partir do corpo da mulher, a mesma lógica que fomenta a indústria pornográfica, por exemplo.
Uma das estratégias mais eficazes do neoliberalismo é criar novos mecanismos de opressão que se ajustem à realidade histórica, cultural e social, alterando sua aparência constantemente para continuar perpetuando os mesmos ideais que sustentam as desigualdades. A indústria cinematográfica, atendendo às exigências do capital, sabe como lucrar com a representação das mulheres sob a perspectiva masculina, fundamentada na ideologia patriarcal e misógina.
As primeiras críticas à representação da mulher no cinema surgiram na década de 1960, direcionada às produções de Hollywood, em relação à imagem sexista que representava as mulheres nos filmes da época, quase sempre oscilando entre a imagem da “santa” ou “promíscua”.
Essas “distorções objetificadoras da realidade” afetam negativamente as espectadoras em diversos aspectos psicossociais. Tais distorções interagem são internalizadas e atribuídas de sentido pelas mulheres, impactando na autopercepção e autoestima, além de fomentarem todo um imaginário coletivo distorcido, seja consciente ou não, acerca da mulher.
As representações são muito importantes na influência que exercem sobre as relações, perpetuando os mecanismos de opressão à nível estrutural e individual.
Uma década depois, a cineasta Giselle Gubernikoff afirma que, em relação à repercussão na subjetividade da mulher, tais imagens “objetificam, anulam enquanto sujeito e recalcam seu papel social”. A autora também elencou os principais tópicos da problemática, sendo estes: objetificação da mulher e dominação masculina, a mulher como “o outro” na narrativa, sexualizada e voltada para a contemplação masculina e a centralidade em torno do desejo masculino heterossexual, eixo norteador das narrativas.
Laura Mulvey, autora que trouxe o conceito de “male gaze” na década de 1980, com embasamento na teoria psicanalítica, tece sua crítica da imagem. O termo criado por ela remete à predominância do olhar masculino nas produções cinematográficas, quando esta perspectiva coloca a imagem da mulher como objeto passivo do olhar e prazer.
Em sua obra intitulada “O prazer visual e o cinema narrativo”, a autora faz uma crítica ao cinema, que naquele período era dominado por diretores homens, brancos e heterossexuais. O cenário não mudou, como sabemos, e portanto, as narrativas desenvolvidas são construídas a partir desse viés, o que faz com que o olhar masculino se sobressaia a qualquer coisa.
A autora traz aspectos importantíssimos de como essa perspectiva masculina reduz a mulher, e principalmente o seu corpo, ao prazer masculino. A problemática não é a nudez em si, mas com o como. Devemos fazer o exercício, enquanto espectadores, de observar em cenas de sexo ou nudez por exemplo, de que forma a cena é filmada.
O enquadramento, movimento de câmera. Tais técnicas funcionam como os olhos, e o que a autora constata é que as lentes da câmera são como “olhos masculinos”. Logo, o que concluímos, é que na maioria dos filmes dirigidos por diretores homens, o corpo da mulher é sexualizado, onde a nudez feminina é exposta de forma saturada e muitas vezes gratuita.
Tudo é uma questão de perspectiva. Uma mesma cena, com determinada intenção, pode ser filmada a partir de diferentes ângulos, o que não muda necessariamente o “objetivo”. Um dos elementos colocados por Mulvey, é que existe ainda a justifica da “crítica” como argumento para validar o male gaze, ou até mesmo não o reconhecer enquanto tal. É como uma fantasia para tornar aceitável a objetificação do corpo feminino, como se, contanto que o filme tenha alguma proposta crítica, não importasse o como essa crítica seja feita, ou seja, como ele é filmado.
Do mainstream ao cult, o male gaze está presente e opera com sua finalidade de preservar as estruturas machistas e fomentar o fetiche atrelado ao prazer visual e o corpo da mulher. O que muda é a roupagem.
Mas então, o que fazemos em contraposição ao male gaze? Primeiramente, é preciso compreender esse fenômeno como um dos meios de reprodução de uma estrutura patriarcal e capitalista, que lucra com as diversas formas de opressão. Isso quer dizer que o male gaze não é uma causa, e sim um sintoma. Em segundo lugar, as autoras que abordam o tema afirmam que o contraponto é “a produção de uma crítica feminista ao cinema narrativo tradicional e a ruptura com seus regimes de prazer visual, criando outras linguagens do desejo” (MALUF, 2005).
Sugiro então, que possamos nos colocar em um lugar de espectador que considere eticamente a importância de romper com tais perspectivas do cinema, que possamos consumir também mais filmes que desafiem essa ótica e que se coloquem como ruptura, nos ensinando a perceber, analisar e exigir um prazer audiovisual que não nos fira enquanto mulheres, e sim nos potencialize. Afinal, queiram ou não, o cinema também é nosso.