Alpha e o espetáculo da fragilidade de Julia Ducournau

Filme exibido em Cannes fará sua estreia no Brasil no Festival do Rio
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O filme teve sua estreia na edição deste ano do Festival de Cannes / Foto: Divulgação

Após o sucesso arrebatador de Titane, que garantiu a Palma de Ouro em Cannes e fez dela a segunda mulher a vencer o prêmio na história do festival, Julia Ducournau retorna com Alpha, um filme que carrega o peso da expectativa e a promessa de mais uma imersão angustiante entre drama e horror físico.

Logo na cena inicial, com uma criança desenhando linhas que conectam as marcas de injeção no braço do tio viciado, fica claro o que está por vir: a transmissão silenciosa de traumas, a herança emocional e corporal que atravessa gerações. A partir daí, o longa se aprofunda em uma narrativa que mistura realismo brutal, tensão crescente e toques de surrealismo, retratando relações familiares corroídas pelo vício, pelo medo e pela proteção sufocante.

A construção sensorial do longa se destaca pela quase ausência de trilha sonora em momentos cruciais, intensificando o desconforto. O design de som meticuloso, aliado à estética perturbadora, especialmente na representação de um vírus fictício que transforma corpos humanos em pó, remete ao melhor do body horror, em clara homenagem ao cinema de David Cronenberg.

Nesse contexto, a direção de arte de Emmanuelle Duplay e a música de Jim Williams ampliam a sensação de um ambiente hostil e opressor. As imagens, combinadas ao som preciso, criam um realismo quase insuportável, capaz de fazer até os espectadores mais acostumados ao gênero desviarem o olhar. Grande parte desse impacto vem do elenco, liderado por Melissa Boros e Tahar Rahim, cujas atuações carregam uma vulnerabilidade crua que traduz com intensidade o medo constante que assola seus personagens.

Essas performances dão vida a um drama que, embora ambientado no presente, evoca de maneira anacrônica o pânico da pandemia de HIV nos anos 1980, um período que aqui ressurge sujo, sufocante, com cores quentes, mas sem qualquer sensação de acolhimento ou segurança sanitária. É um mundo onde, diante da fragilidade da vida, o desconforto continua a prevalecer.

Contudo, apesar dos muitos méritos da obra, o roteiro escorrega ao tratar a doença que move a trama de forma excessivamente simplificada. Em vez de explorar com mais profundidade os aspectos científicos ou sociais do vírus, a narrativa concentra-se quase exclusivamente no colapso emocional da família. Embora haja longas e intensas sequências de sofrimento, o comentário final sobre os sintomas e consequências da infecção soa raso, desperdiçando parte do potencial que o tema carregava.

Por fim, Alpha reafirma a diretora como uma das vozes mais originais do cinema contemporâneo. Seu domínio do desconforto e a sensibilidade para capturar a fragilidade humana em meio ao grotesco tornam essa obra incômoda e justamente por isso, memorável. Não é perfeito, mas, definitivamente é um dos melhores do ano.

Filme visto na cobertura do Festival de Cannes 2025

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