Através de uma atmosfera magnética, Guto Parente constrói poética imersiva em Estranho Caminho

O longa-metragem faz parte da Mostra Siará Cinema 2025
Combinando elementos de absurdo, humor e melancolia, o que inicia como uma história de reencontro em Estranho Caminho logo se transforma em um mergulho profundo na mente do próprio cineasta / Foto: Divulgação

A pluralidade das relações intrafamiliares vai além da troca de palavras entre descendentes ou cônjuges, sendo uma fonte quase inesgotável de criação para aqueles que se demoram na observação dessas interações, munidas de profundidade e do sentimentalismo inerente a todo e qualquer vínculo humano.

No drama fantástico Estranho Caminho (2023), o público acompanha as nuances do reencontro entre o cineasta David (Lucas Limeira) e seu pai, Geraldo (Carlos Francisco), em meio à disseminação crescente da Covid-19. Ao retornar à Capital cearense para participar de um festival, o jovem cineasta vê seus planos interrompidos pelas restrições impostas pela pandemia. É no limiar entre a nostalgia da cidade natal e a urgência de encontrar abrigo, entre o imaginário e o real, que o filme começa a se expandir.

Entender as inspirações pessoais do diretor para o filme torna a experiência ainda mais rica. As atuações de Lucas Limeira e Carlos Francisco conduzem o espectador por camadas emocionais que ultrapassam o simples embate entre pai e filho. Limeira, que já havia se destacado em Cabeça de Nêgo (2020), reafirma aqui sua capacidade expressiva para além do que é dado como óbvio. Já Carlos Francisco, conhecido por seu papel marcante em Bacurau (2019), imprime em Geraldo uma presença contida que traduz o peso da distância e da tentativa de reconciliação.

Com uma mescla de elementos absurdos, humor e melancolia, o que começa como uma narrativa sobre reencontro em Estranho Caminho logo se desdobra em um mergulho profundo na mente do próprio cineasta. Esse movimento já é sugerido nos primeiros instantes, quando, na apresentação de seu longa, David diz que a obra é fruto de “coisas de sua cabeça”, um indício do que está por vir.

A fotografia atua como elemento amplificador desses signos. Destacam-se os belíssimos planos em que David flutua no mar, com a cabeça imersa no reflexo do pôr do sol, imagem que sugere uma consciência igualmente à deriva, prestes a ultrapassar os limites do plano físico. Ao longo da narrativa, essa sensação se torna cada vez mais explícita, guiando o espectador por um fluxo de pensamentos e memórias fragmentadas.

No contexto do isolamento social, as ruas vazias de Fortaleza ganham contornos oníricos. O vento que desenha os cruzamentos, a luz que muda de cor e o tempo que parece dobrar sobre si mesmo compõem uma paisagem de suspensão em tela. Nas caminhadas do protagonista, até os semáforos adquirem valor simbólico: o verde anuncia esperança; o vermelho, frustração ou desespero.

A essa construção imagética e sonora soma-se a trilha de Uirá dos Reis e Fafá Nascimento, que formam um casamento perfeito com o enredo, moldando a atmosfera do filme como se estivéssemos imersos em um sonho. A música transporta o espectador para o estado emocional dos personagens, onde memória, medo e nostalgia se confundem.

É dessa forma que o vazio é preenchido por significados e sensações: tudo contribui para a criação de um universo em que o real se confunde com o delírio, e o espectador é convidado a experienciar pensamentos caóticos, memórias distorcidas e realidades paralelas que se constroem e desfazem diante dos olhos.

Ao fim, Estranho Caminho rompe com as representações convencionais da pandemia. Em vez de se restringir aos efeitos do isolamento, o filme aposta em uma abordagem ao mesmo tempo íntima e universal. Assim, a paternidade emerge como o fio condutor que une diretor, personagens e público, dimensão selada na dedicatória final: “Para Geraldo, meu pai, e todos os nossos mortos.”

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