Com O Agente Secreto, Kleber Mendonça Filho expõe um Brasil que luta contra o esquecimento

O lançamento do filme está previsto para novembro, com uma sessão de pré-estreia marcada para o próximo dia 24 de setembro, no Cine Ceará
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Na imagem, um dos melhores momentos do filme / Foto: Divulgação

Kleber Mendonça Filho é, sem exagero, um dos maiores cineastas em atividade, e talvez o mais completo autor do cinema brasileiro contemporâneo. Assistir à sua trajetória é como acompanhar o amadurecimento de uma ideia complexa ao longo dos anos, que vai ganhando camadas, ritmo, precisão, coragem. Com O Agente Secreto, seu novo longa, cotado para o Oscar 2026, essa evolução atinge um ápice inesperado e arrebatador. Tive o privilégio de testemunhar isso na estreia mundial do filme, em Cannes, no Grand Théâtre Lumière. Foram 15 minutos de aplausos. E ninguém ali estava apenas sendo educado: o cinema havia acabado de ser incendiado.

Desde maio de 2025, não falo de outra coisa. O Agente Secreto não é apenas o melhor filme brasileiro em anos (e a concorrência tem sido forte), mas, sem dúvida, um dos grandes trabalhos do ano no mundo. Um thriller político tropical que mistura a tensão suada de Brian De Palma, o colorido alucinado de David Lynch e o charme narrativo de Quentin Tarantino, tudo isso reinventado à luz quente, sexual e brutal do Recife de 1977.

O que Kleber faz aqui não é simplesmente ambientar um filme na ditadura. Ele transforma a repressão num sentimento físico, quase febril. O Agente Secreto é um drama, é um suspense, é uma comédia sarcástica, é também uma crônica afetiva sobre o medo e sobre a memória. A ditadura é tratada como um pesadelo coletivo, uma novela torta, uma história de assombração que ecoa até hoje. Complementando os temas, o calor recifense, que parece brotar da tela, serve como metáfora e atmosfera. A cidade é viva, pulsante, opressiva e mágica. Kleber recria o verão de 77 com uma direção de arte impecável, que transforma cada plano numa cápsula de tempo (a obra realmente parece ter sido filmado nos anos 1970).

Tudo isso para destacar que O Agente Secreto é antes de tudo um filme denúncia contra o esquecimento, uma batalha pela preservação da memória, da arte e das histórias perdidas que carregamos dos nossos pais e antepassados. O filme não só resgata fatos e sentimentos, mas dá voz ao que foi silenciado, às narrativas que tentaram apagar. É um grito de resistência contra o apagamento histórico, um esforço para que não se perca aquilo que forma nossa identidade e humanidade coletiva.

Na trama, Marcelo (Wagner Moura) foge do Sudeste e tenta refazer a vida em Recife, perseguido por fantasmas reais e simbólicos de um regime que não perdoa quem pensa por conta própria. Ele tenta proteger o filho e sobreviver num país onde a opressão se esconde atrás de cada esquina, onde a mítica “Perna Cabeluda” pode ser tanto uma figura do folclore quanto uma metáfora monstruosa para o braço sujo do poder militar.

Consequentemente, Wagner Moura entrega aqui uma de suas performances mais intensas e refinadas. Kleber soube extrair o melhor de sua fisicalidade e, sobretudo, de sua voz (nunca antes tão bem usada). É uma atuação contida, mas carregada de tensão, como se o personagem estivesse sempre à beira da ação, pronto para reagir. Sua inteligência não se revela na força bruta, mas na paciência estratégica de saber exatamente quando (e se) usá-la.

Além do elenco afiado, o humor absurdo surge com uma sofisticação que equilibra o drama sem nunca enfraquecê-lo, ampliando sua estranheza. Há cenas que evocam o suspense paranoico de John Carpenter, mas com um riso nervoso entrecortando a tensão. Em outros momentos, o espírito de aventura de Spielberg ou o jogo psicológico de Hitchcock ganham contornos cômicos, como se a tragédia flertasse com a sátira. Kleber, no entanto, não imita: absorve essas influências e as traduz em algo totalmente seu.

No fim das contas, O Agente Secreto é sobre o Brasil. Sobre o país que foi, o que ainda é e o que fingimos que não existe mais. É sobre lembrar para não repetir. Sobre rir para não enlouquecer. Sobre correr sem saber de onde vem o tiro. É um filme de espionagem, de memória, de horror, de desejo e de resistência. E é, acima de tudo, um filme de cinema. Do melhor cinema.

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