Com referências bíblicas e narrativa sensível, A Praia do Fim do Mundo desconstrói o paraíso do litoral 

Petrus Cariry aposta nas pausas, no tempo estendido e na contemplação mais do que em explicações verbais
O filme de Petrus Cariry estreia hoje, quinta-feira, 4 / Foto: Divulgação

Se o Ceará é frequentemente vendido pela indústria turística como um estado de praias paradisíacas, o que raramente aparece nas propagandas é o descaso com a orla de cidades menores, afastadas dos grandes centros. Fora dos catálogos turísticos, essas localidades tornam-se mais suscetíveis aos impactos ambientais e ao descaso governamental.

Em A Praia do Fim do Mundo (2025), novo longa-metragem do cearense Petrus Cariry, a fictícia Ciarema, cidade litorânea, está à beira do colapso. Com elenco de peso, o drama problematiza o avanço das marés, que ameaça engolir casas e estruturas inteiras, tornando o que antes era uma longa caminhada até o mar — passando por ruas, barracas de praia e faixas de areia — em um percurso de poucos passos até a varanda.

A despeito do desastre anunciado, Ciarema continua habitada pelas poucas pessoas que resistem em deixar aquele território e as memórias nele guardadas. Escolha narrativa iniciada desde O Grão (2007), um dos primeiros filmes do cineasta, no qual a estética reforçava o compromisso inaugural do diretor em valorizar a territorialidade das tramas.

No filme, cujo roteiro é assinado por Cariry e Firmino Holanda, Helena (Marcélia Cartaxo) tem sua casa constantemente castigada pelas ressacas, mas insiste em permanecer sob o discurso de que aquelas paredes resistiriam mais do que qualquer ameaça externa. O embate com sua filha ambientalista, Alice (Fátima Macedo), nasce dessa tensão entre permanecer e partir, entre o afeto que ancora a personagem e o incentivo ao desapego de um espaço condenado. Esse confronto ultrapassa o plano doméstico e se projeta como alegoria das disputas mais amplas entre memória, resistência e destruição ambiental.

A figura do pai marinheiro ausente ganha contornos que extrapolam a simples referência. Nas sequências em que Helena visita o quarto do companheiro, o espectador é conduzido a um espaço carregado de simbolismo. Não apenas os objetos, como a luneta e a arquitetura do cômodo — com teto triangular e paredes de madeira que remetem ao casco de um barco — evocam a presença da imensidão do oceano, mas também a própria sonoplastia reforça essa atmosfera, por meio do som que remonta ao interior de conchas, e do belo jogo de câmera entre o capacete de mergulho e Helena. Junta-se a isso a trilha musical de João Victor Barroso, que intensifica o peso da iminência. O som da maresia, das ondas profundas e os ecos do fundo do mar funcionam como prolongamentos desse luto.

Através dos olhares, o filme opta por investir no sensorial, transformando o silêncio em matéria palpável, e é nessa construção que a fotografia também ganha destaque. Colocando os personagens em planos contra a luz, as imagens estáticas criadas evocam uma imensidão semelhante à sensação de estar diante de uma pintura. Inserir tais imagens funciona quase como um prólogo visual: elas antecipam que o filme se posicionará diante da crise não apenas como denúncia social, mas como um aviso que convoca a leitura do presente à luz do mito.

Há de se pontuar igualmente o subtexto em torno das referências à história bíblica de Jonas. Engolido por uma baleia por três dias e três noites, o profeta recebe um sinal divino e se torna mensageiro da tragédia que espreita. Este tom misterioso remonta ao já visto em Mãe e Filha (2012), mas, em A Praia do Fim do Mundo, a proposta de construção desse personagem místico se mostra mais explicitamente relacionada à narrativa formada em torno do mar e dos seres mitológicos.

Num olhar mais geral, a escolha visual pelo tom monocromático em preto e branco instiga um contraste interessante com a visão cotidianamente apresentada das praias como espaços coloridos pelo céu azul, pelos verdes mares e aquecidos pelo sol escaldante. Isso dá a Ciarema uma atmosfera fria, criando uma sensação de suspensão entre o real e o onírico que, se não fosse pelo barulho habitual do movimento das ondas, mal faria lembrar que aquela era uma praia.

Em síntese, Petrus Cariry aposta nas pausas, no tempo estendido e na contemplação mais do que em explicações verbais. Seus filmes lembram que, muitas vezes, o “menos é mais”: o gesto contido, o olhar fixo ou a respiração suspensa podem dizer mais do que longos diálogos. Quando a fala surge, não é para substituir, mas para somar.

A Praia do Fim do Mundo”, portanto, é um drama que tira o espectador da zona de conforto. Combinando denúncia social e potência estética, o filme reflete sobre os efeitos da má gestão ambiental no litoral e provoca reflexão sobre memória e construção narrativa para além do óbvio. Como nas produções passadas, Petrus Cariry aposta na força das imagens para construir uma narrativa que transforma a resistência de seus personagens em metáfora de permanência diante da iminência da destruição.

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