
Vocês, cidadãos do mundo, sabem o que faz a cidade fazer sentir? Não pensem para responder. Bom, pelo menos eu não pensei quando descobri.
Tudo começou em 2016, o mês era incerto. À época, eu já havia perambulado por grande parte do Brasil, Estados Unidos, França, Portugal e Bélgica – mesmo que tenha passado só um dia neste último (e para os que pensam que eu sou uma grande viajadora: faz 10 anos que não saio do país, mas não vim falar sobre isto).
Quando estava em Paris, Lisboa ou Orlando senti todas as coisas que as cidades proporcionam aos turistas: A aventura, a descoberta, a sede pelo novo. Comi croissants que me fizeram entender onde eu estava, assim como cherry cokes levaram o meu pensamento para exatamente o que os meus olhos enxergavam e o mesmo fizeram os pastéis de Belém.

No entanto, em 2016, quando estava eu muito focada em aproveitar o mundo afora, pensava nada ou mesmo não me importava com a cidade em que nasci, e resumia tudo à beleza das praias cearenses (inclusive, se me perguntassem uma tradição fortalezense eu diria: comer caranguejo às quintas-feiras – sem capacidade de mencionar outra). Como uma boa adolescente de 18 anos, naquele ano comecei a frequentar a vida noturna do Dragão do Mar: Órbita, Chopp do Bixiga, Amicis, Armazém.
Em uma dessas vezes, estava numa roda com pessoas que não tinham qualquer conexão comigo a não ser o fato de dividirmos o mesmo bairro, mas tinha sido convidada por uma amiga íntima que estava de rolo com um garoto daquela turma, e decidi ir. Na praça do Dragão, perto do Café Avião, entediada, comecei a olhar para tudo à minha volta que parecia ser mais interessante que aqueles moleques sem graça. Perto de mim, outro grupo com pessoas aparentemente muito mais legais e divertidas, tiraram uma caixinha de som de dentro de alguma bolsa e deram play. Pelos ares comecei a ouvir um solo de guitarra com algum pedal metalizado, como um faser, (não sei sobre pedais) e pensei: nova do Arctic Monkeys?
Depois de 20 segundos de instrumental, ouço: “Dizem que sou louco por você, mas como vou dizer que não?” E lembro de franzir as sobrancelhas: Peraí, isso é português? – Escuto a música até o fim e a coragem de chegar naquela galera e perguntar quem estava cantando não aparecia, até porque se o grupo que estava comigo visse eu indo em direção àquelas pessoas fora da caixinha, eu seria piada pelo resto da noite. Sim, assumo, eu era uma adolescente tapada, burrinha demais, mas eu tinha vontade de mudar. De verdade. Mesmo. Eu só precisava de um empurrão (mas não nego que fui covarde até conseguir). Durante aquela semana, a única interrogação que passeou pela minha mente foi: de quem era aquela música?
Crescendo na Aldeota e estudando em colégio de playboy difícil mesmo é conseguir encontrar interesse nas coisas subversivas (digo, difícil para um/uma adolescente) e talvez, se eu não tivesse dedicado a maior parte do meu tempo dentro daquela matrix, eu nunca cansaria dela – falando assim lembro de quando a Fiona Apple disse ter parado de cheirar cocaína depois de ver o Tarantino e o Paul Thomas Anderson usando.
Eu sofri um machismo tão violento e fui alvo de tanta babaquice que eu teria de ter um nível de burrice muito acima da média para continuar onde estava. Esta foi a melhor coisa que me aconteceu, então fica aqui a minha gratidão: obrigada fulanos, se não fosse por vocês eu nunca sairia daquele inferno entediante de vida.
Eventualmente, eu esqueci sobre a música. No outro dia até tentei pesquisar qualquer coisa que lembrasse a letra meio embaçada na minha memória que guardava pouco ou nada do que ouvi. Só sabia que era em português e que se tratava de uma voz carregada, mas não consegui sequer definir o sotaque só ouvindo de longe.
Meses se passaram. Depois daquele dia diminuí a quase zero o número de vezes em que saí com aquelas pessoas ou pessoas parecidas. Comecei a ficar em casa cada vez mais: foi a melhor decisão que tomei. (Inclusive, fica a dica: façam de tudo para gostar da casa de vocês, porque é o melhor lugar para se recorrer quando tudo parece insuportável demais – Dê um tempo, volte depois, com outras pessoas – spoiler).
Os meus melhores amigos daquele período foram: Spotify, Netflix, Youtube e (o falido?) Popcorn Time. Aquele foi o ano em que eu mais assisti a séries e filmes, antes de conhecer o meu atual namorado. Também foi o começo de um hiperfoco que permanece até hoje: construir as playlists perfeitas.
Navegando pelo Spotify, de repente: “Achamos que você pode gostar de Cidadão Instigado”.
Tudo bem, vamos lá. Fui colocando as músicas mais ouvidas inicialmente (na época, era “Land of Light” e “Besouros e Borboletas”) e fiquei com uma pulga atrás da orelha: Onde eu tinha ouvido aquela voz? Logo seguida de outra pulga: Pera, isso aqui é sotaque cearense!
Todas as estradas levaram a “Dizem que sou louco por você”. Entrei em êxtase. Lembrei na mesma hora daquela galera que ligou o som na praça do Dragão. Ouvi por horas em looping. Coloquei a música em alguma playlist que fiz sobre bandas autorais (?), junto com outras que eu já conhecia, como: Mombojó, Dônica, Baleia. Sabe? Nada a ver com Cidadão. Eu sabia pouco ou quase nada da significância daquele som, achava que era tudo Brasil e, por ser Brasil, encaixava com mais Brasil. Enfim, burrinha.
Também não quis aventurar ouvir outros sons do grupo (acredito que o preconceito de acabar não gostando – era a primeira vez que eu ouvia e gostava de uma banda cearense atual que não era o óbvio [Selvagens], mas eu também conhecia absolutamente nada – não deixou).
Durante um bom tempo, eu só conhecia as três músicas que citei da banda, e, por mais que estas já sejam ótimas, ela guarda coisas ainda melhores. Mas a verdade é que eu não dei a atenção devida, porque não estava conseguindo correlacionar o som ao que eu ainda iria descobrir.
E descobri
Em 2017, ao entrar na faculdade de jornalismo e fazer boas amizades, eu voltei a gostar da vida noturna de Fortaleza. Agora, ela guardava outros repertórios, que conversavam melhor comigo e que faziam com que eu me sentisse bem. Várias noites regadas a cachaça, cerveja e (eu era bem jovem, certo?) São Braz ressignificaram aqueles lugares que eram anteriormente palco de frustrações.
Lembro que fui a uma festa maneiríssima com a banda Biltre e pirei em “Pissaicou” que, além de fazer dançar, também fazia rir como poucas. Diversão em todas as camadas. Em um passado não tão distante daquele, eu escutava muito Forfun (“Hidropônica” e “História de Verão”, na verdade, as outras eu não conhecia). E, ainda em um mais anterior, ouvia Charlie Brown Jr. – o velho “Bocas Ordinárias”. Então, a cena musical jovem mais atual do Rio de Janeiro já era conhecida em sua essência por mim. Entendia todo o humor por trás dos chiados, palavrões e bonés para trás.
Sim, mas eu não morava no Rio de Janeiro (por mais que já tenha sido uma vontade – ainda bem que não passou disso). Era massa saber o que funcionava lá, mas e em Fortaleza? A identidade daqui não poderia ter ficado presa nas músicas de Belchior, nas piadas do Tiririca. Na saída daquela festa, enquanto esperava o preço abaixar do uber e comia qualquer coisa pelos arredores do Armazém, o dia perto de raiar foi cenário do meu encontro com a cidade que cresci.
Já era quase de manhã, quando vi o céu ameaçar clarear. Ébria, cantarolei o trecho de “Land of Light”: “A luz me derrete em lágrimas… Me afogando” e dentro de mim ouvi os instrumentos crescerem ao final da frase “Uh, uh, uh…”, assim como na música. Não sei ao certo a minha expressão no momento, mas, em memória, vejo os meus olhos brilhando, iluminados pela penumbra laranja. O sol nascendo, simbolizava também o nascimento de uma nova eu. A que se apaixonava por Fortaleza. Não lembro se fiquei com os olhos marejados naquele momento, acho que só estava sentindo o meu peito cheio, palpitando e a respiração ofegante. A picardia que futuramente eu iria entender melhor. Já senti tantas vezes desde aquele momento que perdi as contas.
Será que existe vício em ser feliz? Vivo buscando aquele sentimento em tudo o que faço pela cidade. Para mim é importante que as coisas guardem identidade, é importante somar sons às memórias, ao que o olho alcança ou ao que as mãos tocam. Fortaleza ficou de cabeça para baixo sobre o que eu entendia a seu respeito depois da música de Fernando Catatau. As coisas se tornaram lindas, os escombros, as ruínas, principalmente. A minha paixão pelos edifícios antigos da cidade, o que me permitiu, em 2019, iniciar um projeto documental sobre memória que, infelizmente, não foi para frente. O centro da cidade deixou de ser apenas comércio. Tudo mudou. Fortaleza ficou bonita demais. E é porque, como disse, já conhecia Paris.
Tudo o que foi dito para finalmente poder dizer que o álbum que guarda as três músicas citadas no texto, e mais outras nove (algumas ainda melhores), chama-se Fortaleza – eu não sabia disso quando descobri minha paixão por ela – e completa 10 anos neste ano (o mesmo tempo q passei sem viajar ao exterior – inclusive, caso calculassem melhor, completaria a década no ano que vem, no aniversário de 300 anos da cidade, não que importe muito, mas seria interessante a coincidência). Logo mais vem uma análise completa deste disco tão importante para a cultura fortalezense e que carrega o nome da cidade.
Infelizmente, não é como receita de bolo, ou mesmo matemática, não se ensina sobre paixão. Então, só peço para que escute Fortaleza – o álbum e a cidade – e, caso tenha oportunidade, agarre a chance de se apaixonar por ela.