Eddington: Ari Aster ri enquanto cutuca uma ferida ainda aberta

Engraçado até deixar de ser: o filme é uma coletânea de piadas cruéis, onde cada riso vem seguido de um constrangido facepalm
Compartilhar
Joaquin Phoenix repete a parceria com Ari Aster após Beau Tem Medo / Foto: Divulgação

Nunca fui entusiasta da obra de Ari Aster. Para mim, sua filmografia sempre pareceu superestimada e excessivamente autocentrada, marcada por uma pretensão constante de reinventar o que, muitas vezes, não precisava ser tocado. Hereditário, por exemplo, já expunha essa megalomania criativa: um filme de ritmo arrastado que, no ato final, acelera de forma abrupta e quase compromete tudo com a obviedade de seus “mommy issues”.

Em Midsommar, Aster consegue equilibrar melhor esses impulsos, mas em Beau Tem Medo, mergulha de cabeça na própria vaidade. O resultado é uma ode à mediocridade: um diretor com muito a dizer, cercado por ouvidos demais dispostos a ouvi-lo, mas incapaz de transformar esse ruído em profundidade. O filme tenta abarcar o mundo, mas entrega apenas uma colcha de retalhos histérica e sem propósito.

Felizmente, esse mesmo erro não se repete em Eddington, seu novo trabalho, que tive a sorte de assistir na première no Festival de Cannes 2025. Aqui, Aster constrói um western moderno com a pandemia da Covid-19 como pano de fundo, onde a cidade que dá nome ao filme serve como microcosmo de um colapso civilizatório que ainda ecoa — ou talvez nunca tenha terminado.

A identificação é imediata: tudo parece absurdo, mas ao mesmo tempo familiar. Vemos políticos e antipolíticos convivendo lado a lado com negacionistas, teóricos da conspiração e extremistas digitais. É como se o filme nos colocasse em um scroll infinito do Instagram ou do TikTok, onde se acumulam desinformação, discursos de ódio e um espetáculo grotesco de autodestruição coletiva.

Esse é o motor narrativo de Eddington: capturar o caos emocional e informacional do nosso tempo. Aster transforma a ansiedade contemporânea em linguagem fílmica, retomando com mais maturidade o tom de paranoia cômica que havia ensaiado no primeiro ato de Beau Tem Medo. Em Eddington, porém, a tensão é mais eficaz — rimos, mas cobrimos o rosto em desconforto.

Consequentemente, Joaquin Phoenix, mais uma vez, mergulha em um papel desconcertante. Seu personagem é violento, dúbio, politicamente problemático, mas carismático o suficiente para manter nossa atenção, mesmo quando seus atos beiram a completa imbecilidade. É fascinante ver um ator tão camaleônico se entregar ao grotesco com tanta precisão.

Alguns atores, no entanto, são subutilizados. Emma Stone e Austin Butler, por exemplo, parecem estar no filme mais pela força de seus nomes do que por real necessidade narrativa. Já o enigmático papel de Pedro Pascal é tratado com certo distanciamento, o que, curiosamente, o torna mais interessante. Há lacunas propositais que ampliam o mistério e nos fazem questionar a própria veracidade de suas falas e ações. É o oposto do protagonista de Phoenix e naturalmente complementar.

Eddington é um faroeste contemporâneo com pinceladas de horror e um humor ácido, que não hesita em fazer comédia com temas que ainda ferem — e matam. O filme cutuca a ferida aberta da pandemia, do autoritarismo digital, da manipulação política e da geração TikTok usada como massa de manobra. E o faz com uma personalidade rara no cinema atual. Pela primeira vez, talvez Ari Aster tenha encontrado um equilíbrio entre ambição e substância. Que ele continue assim.

Confira mais detalhes na crítica em vídeo:

Acompanhe o Veredas nas redes sociais e fique por dentro de tudo!

ASSUNTOS

Publicidade

Mais lidas

Publicidade