Em Salmo 91, Grupo Imagens de Teatro faz do desconforto um elemento estético e discursivo 

A peça é uma releitura da obra “Estação Carandiru” (1999), de Drauzio Varella
A companhia reúne importantes reconhecimentos ao longo de sua trajetória, incluindo dois prêmios Myriam Muniz/FUNARTE (2009 e 2014) e mais de 40 premiações nas categorias de melhor espetáculo, direção, atuação e elementos técnicos / Foto: Governo do Estado

O discurso da fé é, possivelmente, um dos mais potentes dentro das narrativas humanas, independentemente do contexto em que se insere. Crer que a vida não é apenas observada, mas cuidada por uma força superior, provoca um misto de sensações, da confiança quase inabalável de que nossas ações são guiadas para um bem maior, até a dúvida sutil, porém persistente, de que tudo não passe de ilusão.

Encenada há mais de quinze anos por diferentes grupos teatrais pelo país, Salmo 91 é uma adaptação dramatúrgica de Dib Carneiro Neto baseada no livro Estação Carandiru (1999), do médico Drauzio Varella. Por meio de monólogos, o público é conduzido às memórias de sobreviventes do Massacre do Carandiru, ocorrido em 2 de outubro de 1992, quando a Polícia Militar invadiu o Complexo Penitenciário de São Paulo, matando (ao menos) 111 presos.

Na montagem do Grupo Imagens de Teatro, dirigida por Edson Cândido, a obra retorna com fôlego renovado, colocando o público num espaço liminar entre opressores e oprimidos. Com elenco formado por Nairton Santos, Almeida Júnior, Carlos Gildo, Chico Fontela, Layla Sah, Marcos Rocha, Daniel Noronha, Samuel Siebra, Adney Pinheiro e Felipe Rodrigues, a peça humaniza o presídio por meio de corpos tensionados e questiona quais aspectos desse episódio de violência ainda persistem.

A direção aposta em uma experiência imersiva desde o início. Quando o público entra, a peça já está em andamento. Sussurros, gestos contidos e olhares fixos marcam a introdução silenciosa do espetáculo. Soma-se a isso a disposição das cadeiras ao redor do cenário, rompendo a separação entre palco e plateia: o público não apenas assiste, mas também é observado, torna-se cúmplice.

É nesse ambiente de tensão compartilhada que um elemento singular se impõe logo nos primeiros minutos: o cheiro. Salmo 91 não se limita a uma cenografia visual ou sonora, ele ocupa o espaço por completo através do odor, sobretudo de remédios e álcool hospitalar (parte da caracterização do personagem Edelson Pereira), além do perfume marcante da personagem vivida por Layla Sah.

Essa escolha acentua o desconforto e impede qualquer distanciamento emocional. Não há fuga: é preciso respirar o mesmo ar que os personagens. O incômodo não é só psicológico, ele se aloja no corpo. A angústia dos encarcerados reverbera na plateia, que, mesmo livre, se vê presa pelo excesso sensorial. A náusea surge, aqui, como forma de empatia.

Esteticamente, a disposição dos elementos cênicos é bem definida por ciclos, evitando a poluição visual — que atinge sua potência máxima na cena final. A iluminação, com foco que desce de cima para baixo, acentua o tom dramático em diversos momentos. No entanto, quando muito vertical, essa luz pode dificultar a visualização das expressões faciais por parte dos espectadores mais distantes. Esse efeito, embora crie uma curiosidade em quem vê de longe — percebendo apenas os movimentos labiais durante os monólogos — também instiga quem está mais próximo a se inclinar na cadeira, tentando captar os detalhes.

A estrutura narrativa entre os monólogos também se destaca. O foco de luz alterna-se ciclicamente entre os personagens, criando uma dinâmica envolvente. Cada um assume a cena com gestos, trejeitos e expressões próprios, oscilando entre o humor e a gravidade, sem quebrar a densidade da narrativa. Ainda assim, senti falta de mais ações no centro do espaço cênico, como ocorre na breve, porém potente, cena do jogo de futebol narrada pelo personagem de Nairton. Fora esse momento, o principal encontro coletivo no centro ocorre apenas no desfecho, durante o confronto entre presos e policiais.

Talvez por isso essa cena final tenha tanto impacto: a disposição do público ao redor do espaço torna cada perspectiva única. Estar à frente, iluminado, ou ao fundo, na penumbra, oferece visões diferentes da mesma ação.

No fim, Salmo 91 é uma experiência multissensorial que exige mais do que simplesmente estar presente. Vai além da classificação indicativa para maiores de idade: sua densidade exige preparo emocional. Reparar nos trajes deixados no chão ao final, ou mudar o foco de visão a cada novo nome ecoando nos alto-falantes, intensifica a experiência e convida à reflexão. Ao sair da sala de espetáculo, tudo o que se encontra do lado de fora já ganhou outro peso, outro simbolismo.

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