
‘‘O Brasil é um Estado Laico!’’
Você certamente já deve ter ouvido essa afirmação em algum momento. Entretanto, poderia o Brasil, levando em consideração a expressiva presença de políticos conservadores no Senado Federal, tal como a chamada bancada protestante no Congresso Nacional, ainda ser considerado um Estado Laico? Para compreendermos melhor o fenômeno da chamada INSTRUMENTALIZAÇÃO DA FÉ, precisamos elucidar o que se traduz por ESTADO LAICO!
Estado Laico: Modelo político que garante a separação entre religião e governo – assegurando uma neutralidade estatal no que diz respeito às questões religiosas. Desse modo, é correto afirmar que o Estado não adota uma religião oficial, não interfere nas mais diversas práticas religiosas e não favorece grupos religiosos específicos. A origem histórica da ideia de Estado Laico surgiu durante o movimento ILUMINISTA na Europa. Muitos foram os pensadores e intelectuais que, vendo a necessidade de um equilíbrio entre Estado e Religião, defenderam a separação dos dois.

‘’A modernidade conquistou o Estado Laico e separou o poder político do poder religioso. Porém, há poderes políticos travestidos de poder religioso, como a convicção ianque do ‘’destino manifesto’’. E há poderes religiosos que se articulam para ocupar os espaços políticos’’, escreve Frei Betto, frade dominicano e escritor.
O Brasil tem uma das maiores populações religiosas do mundo. A fé mobiliza os brasileiros de norte a sul. Essa fé, tão pluralizada e rica em suas tradições, é um espelho de sua história colonial, miscigenação cultural e claro, desigualdades sociais que atravessam os anos. Essa multiplicidade religiosa que se vê no Brasil, é marcada por uma complexa mistura de mudanças no campo sociopolítico. Deus está sempre na boca do brasileiro, um povo que, apesar dos pesares, procura sobreviver em meio ao caos. A fé brasileira está profundamente entrelaçada na cultura como um todo. Cerca de nove em cada dez brasileiros dizem, por exemplo, acreditar em Deus, segundo a pesquisa GLOBAL RELIGION 2023, produzida pelo instituto Ipsos.
O Estado Brasileiro tornou-se oficialmente laico em 1891, com a Constituição Republicana, que substituiu o catolicismo como religião oficial. Todavia, a laicidade brasileira vem enfrentando diversos desafios. O fenômeno do crescimento no Brasil do grupo religioso chamado genericamente de ‘’evangélicos’’, tem levado estudiosos e pesquisadores a afirmarem que o país está passando por uma mudança no cenário religioso.
A sociedade brasileira caminha para tornar-se um país majoritariamente protestante. Em meio a essa onda constante de crescimento evangélico em todo o território nacional, cresce também os inúmeros discursos de caráter fundamentalista e dogmático, carregando uma visão conservadora de sociedade e instrumentalizando a experiência religiosa. Igrejas de diferentes segmentos influenciam discursos e práticas políticas, tendo hoje diversos representantes no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, defendendo principalmente valores morais religiosos.
Muitos parlamentares utilizam o discurso religioso para obter apoio de fiéis e aprovar leis que reforçam seus interesses. O discurso que pauta os ‘’valores cristãos’’, como a família tradicional, tem como objetivo garantir votos de comunidades religiosas. A chamada Bancada Evangélica, como já dito, é um exemplo claro desse uso equivocado e desrespeitoso da religiosidade. Esse uso indevido da religião no âmbito político tem contribuído para a divisão da sociedade brasileira. Temas delicados como a questão do aborto e o casamento homoatefivo, são deliberadamente atacados por grupos conservadores que se alimentam desse discurso instrumentalizado da fé.
Há, e nesse ponto não restam dúvidas, uma tremenda hipocrisia por parte de muitos líderes religiosos, pessoas que carregam uma profunda ganância interior, amantes do capital, utilizando-se de um discurso pautado em textos bíblicos para aliciar e dominar mentes. O púlpito, antes lugar sagrado e respeitoso, virou um verdadeiro palanque político. A instrumentalização da fé é um fenômeno cada vez mais evidente em toda a sociedade.
Comunidades inteiras, não tendo o devido amparo social que deveria ser promovido pelo Estado enquanto esfera pública, são engolidas pelo pseudodiscurso da fé. Instrumentalizar a fé, usando-se da religião ou crenças religiosas como ferramenta para atingir objetivos nem sempre tem relação com a espiritualidade, como ganho político, econômico e mesmo social. Ao tomarmos a chamada Teologia da Prosperidade como exemplo, é possível observar o uso do discurso religioso para garantir vantagens financeiras em cima da fé dos fiéis. O uso da religião como garantia de alcançar o poder é hoje o grande fetiche de políticos conservadores e fundamentalistas.
Em tempos de campanha eleitoral, numerosos são os candidatos que passam a frequentar assiduamente templos religiosos, promovendo a leitura bíblica de textos que lhe assegurem um controle social e político. A fé, que deveria ser algo pessoal, é escancaradamente manipulada por indivíduos e grupos diversos. Muitos desses discursos são descompromissados com a verdadeira experiência religiosa. Cria-se então, com base nessa fala instrumentalizada, uma verdadeira onda de medo. O medo, quando aplicado para controle social, transforma-se em fobia, como bem afirmou Freud. Esse mesmo medo é sempre utilizado por movimentos autocráticos que procuram impor seus dogmas, de modo a controlar corpos e mentes. A teologia do medo utiliza a tríade: cura, exorcismo e prosperidade.
”Para o sistema capitalista neoliberal não há possibilidade de democracia e nem soberania ou autodeterminação dos povos”. Afirma a secretária-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), pastora Romi Becke, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), no artigo em que reflete sobre a instrumentalização entre religião e política.
Observa-se com tudo isso uma crescente ocupação religiosa da esfera pública. Isto é, apóstolos, pastores pentecostais, líderes protestantes, missionários, a cada pleito, tentam transformar seus templos em verdadeiros currais eleitorais, seja para eleger seus próprios candidatos ou disseminarem discursos de caráter autocrático.
Os impactos da instrumentalização da fé no Brasil levam a uma polarização política, desigualdade social e descredibilização da religião. O Estado Laico é fundamental para sociedades democráticas, garantido que as mais diversas pautas políticas sejam decididas com base no bem comum, não em dogmas ou medo. Embora o Brasil tenha avançado nesse ponto, desafios persistem, como a influência religiosa no Congresso Nacional. A laicidade exige vigilância e neutralidade estatal. Lembremos sempre: o Estado não pode ser a extensão de uma corrente religiosa.