
Falar sobre Flow é um desafio, especialmente considerando que é uma das animações mais deslumbrantes criadas nos últimos anos — e talvez de toda a história da linguagem cinematográfica.
Em primeiro lugar, é impossível não ressaltar a maestria com que o diretor Gints Zilbalodis conduz sua narrativa sem recorrer a uma única palavra dita, uma tarefa que até mesmo os cineastas da era do cinema mudo costumavam enfrentar com dificuldade.
Aqui, a paciência é essencial, visto que o espectador precisa se deixar envolver pela magia que o roteiro e o visual proporcionam. A construção do universo é cativante, logo, a história te conquista, e, à medida que as figuras vão se desvendando, nos vemos igualmente preocupados com eles.

Consequentemente, Flow é o tipo de trabalho que, desde a primeira imagem, nos conecta de maneira visceral, deixando-nos em um estado de constante tensão e empatia pelos heróis. É aquele longa-metragem em que você se mantém em silêncio, tentando compreender os sentimentos que ferem o estômago, ou então, em que a tensão é tão palpável que nos vemos falando sozinhos, imersos nas aflições do grupo protagonista. Ambas as reações são válidas.
No contexto do filme, o planeta vive um momento pós-apocalíptico, o que torna o drama dos personagens principais ainda mais pungente. Eles são: um gato, um cachorro, uma capivara e um lêmure. A presença de um pássaro, com um dos finais mais enigmáticos da década, reforça o caráter quase mítico da narrativa, evocando a essência de Hayao Miyazaki, quando a obra se permite se entregar a uma estética mais de fábula
Nesse sentido, Flow faz um apelo à crise climática de uma forma mais eficaz do que muitos filmes que tentam abordar o tema de maneira pomposa e excessivamente moralista. E, repito, tudo isso sem pronunciar uma única palavra. O produto é tão sutil em sua elegância que nos leva a refletir sobre os trabalhos que trataram dessa mesma questão e falharam quando se perderam na melancolia ou no didatismo.
Não que a ausência de diálogos seja um mérito absoluto — acredito que a verdadeira força de um produto audiovisual fique na capacidade de se comunicar, mas não necessariamente através do texto. O corpo, o movimento, os grunhidos e os gestos também são formas de expressão. Flow sabe como construir sua narrativa por meio da fisicalidade, o que resulta em uma obra que, mesmo assim, segue a estrutura clássica de três atos de maneira original e apaixonante. Em resumo, uma imagem vale mais do que mil palavras.
Por fim, entrando no ponto de vista dos bichinhos, o filme aborda temas como sobrevivência, solidão, mas também companheirismo e a habilidade de conviver com as diferenças. Seria o filme ideal para crianças, se os adultos não tivessem, de algum modo, perdido essa capacidade de lidar com o outro. Se até os animais conseguem, no fim do mundo, coexistir, talvez seja hora de nós, humanos, refletirmos sobre nossa própria capacidade de convivência enquanto ainda temos tempo.