
Que coisa curiosa é a véspera. Esse dia que não é o acontecimento, mas já não é mais o antes. Vivo algumas vésperas agora: a do meu aniversário, a do Carnaval e a de algo que ainda não sei nomear. Algo que se anuncia no compasso dos dias, que se desenha entre o que fui e o que estou sendo. Há um lugar estranho entre os vinte e poucos e vinte e tantos anos, uma espécie de terra de ninguém onde tudo parece suspenso. Ainda sou jovem para tantas coisas, mas já me sinto velha para outras. Como se eu dançasse no meio de um bloquinho de carnaval, sem saber se quero seguir no ritmo ou se já é hora de ir para casa.
Ainda me empolgo com a ideia de sair com os amigos, de viver intensamente, de fazer do feriado um cenário de histórias que contarei por anos. Mas, ao mesmo tempo, já começo a calcular o cansaço antes mesmo de vestir a fantasia. Penso em como vou organizar a casa antes de sair, no trabalho que preciso adiantar, nas horas de sono que vão fazer falta. Olho no espelho e vejo mudanças que antes passavam despercebidas. Os cabelos já não têm o mesmo brilho de quando eu não me preocupava tanto com hidratações, a pele exige um tempo que nem sempre tenho, o corpo responde diferente aos excessos que antes não deixavam rastros. As angústias estéticas pesam nos ombros, mas nos cobram que as pernas sigam firmes mesmo assim. É como se esperassem que eu me tornasse alguém tão diferente da criança que fui, mas ainda com o mesmo teor de colágeno que ela. Bom, essa mesma menina, que brincava de Carnaval na rua sem pensar no amanhã, agora se olha de perto demais, procurando detalhes que, no fundo, não deveriam importar tanto.
E os planos? Ah, os planos. Antes tão concretos, desenhados em linhas retas, agora parecem esboços, rabiscos soltos. Carreira, futuro, sucesso — palavras que já pareceram definitivas agora se espalham como confetes ao vento. O que era certo, agora flutua. E eu quis tantas coisas… Entre elas, ser motorista de ônibus, porque achava o máximo passar o dia inteiro cruzando a cidade, vendo tudo mudar pelas janelas. Depois, quis trabalhar em um supermercado, só para sentir a liberdade de deslizar de patins pelos corredores. Já tive certezas que hoje me escapam e já abandonei planos que pareciam destinos. Aos 27, tenho um novo querer: entender que planos mudam e que o caminho se refaz enquanto a gente anda. Quero que o vento que espalha os confetes também os guie a um lugar bonito. E que tudo bem se eu mesma precisar recolher os confetes que ficaram pelo chão — só para jogá-los ao alto outra vez.

Na família, noto o tempo passando de forma mais nítida. Ainda os tenho aqui, mas não tão jovens, não tão ágeis, não tão imortais quanto pareciam quando eu era criança. Há algo de doce e melancólico em vê-los envelhecer. O jeito como descansam, como mudam pequenos hábitos, como fazem pausas mais longas entre uma frase e outra. As vozes que antes eram firmes agora hesitam. O passo que guiava agora precisa de apoio. Ainda estão aqui, mas o tempo soprou sobre eles também. E dói. Dói perceber que o tempo não brinca. Que ele derruba na sua frente quem um dia você achou que era tão forte quanto o Hulk. Então, a gente se dá conta de que já não somos aquela menina que recebe colo, mas também aquela que ampara. Que segura uma mão enrugada e deseja, em silêncio, que ela continue quente por muito tempo.
O amor por alguém também já desfilou em muitos ritmos. Já foi marchinha apressada, já foi samba triste no fim do baile. Já foi carta rabiscada na última folha do caderno, com promessas ingênuas que se perderam com o tempo. Já foi aquele frio na barriga que parecia o bastante, mas nunca era. Já foi um trio elétrico que some na esquina, deixando só o eco da batida no peito. Hoje, o amor tem outro ritmo. Não grita, mas permanece. Não consome, mas transborda. Tem cheiro de café de manhã cedo e mãos que se encontram no meio do dia. É um olhar que entende sem precisar perguntar, um silêncio confortável, um “chega logo em casa” depois de um dia difícil. Inclusive, escrevo essa coluna ao lado do meu parceiro de vida, aquele que, sem saber, eu já esperava desde menina. Aquele que tem a calma que antes eu não entendia, mas hoje, não trocaria por nada.
Sem perceber, montamos um camarote na vida e distribuímos convites àqueles que chamamos de amigos. Ele já foi um espaço lotado, uma festa que parecia não ter fim. Alguns ainda estão ali, mesmo que os encontros tenham se tornado mais raros. Outros ficaram pelo caminho, não por brigas ou desencontros, mas porque a vida tem seu jeito de dispersar foliões quando os passos já não acompanham a mesma batida. Na infância, amizade era questão de proximidade: bastava dividir a calçada, o lanche ou o recreio. Depois, vieram aqueles que seguravam nossa mão nos dilemas adolescentes e juravam estar ali para sempre. Pessoas que cresceram comigo já têm filhos, carreiras consolidadas, boletos que eu ainda não sei pagar. O tempo passa, e a gente aprende que amizade também é sobre ritmos. Alguns são de trio elétrico, vibrantes e intensos, mas que seguem em frente e perdemos de vista. Outros são de bloco de rua, surgem nos momentos certos, trazendo alegria sem aviso prévio. Mas há aqueles que ficam no camarote: os que permanecem, ano após ano, aproveitando a festa ao nosso lado, seja ela boa ou ruim. Nem toda amizade atravessa todos os carnavais, mas algumas viram marcos culturais em nós.
E no meio desse baile, há também pequenos foliões — que moram na nossa casa, dividem a nossa cama e atendem pelos nomes mais carinhosos do mundo (ou, para os poliglotas, simplesmente “pets”). Companheiros fiéis, que não pedem justificativas, só oferecem amor sem exigências. Olho para os meus, enquanto os chamo de filhos, e vejo como cresceram, como o tempo passou para eles também. Mais maduros, mais calmos, mas cada um ainda com aquele olhar de quem me entende melhor do que qualquer pessoa. Nessa festa, eles são como glitter: pequenos, brilhantes, cheios de vida, e que, mesmo depois da festa, ficarão grudados na gente para sempre.
E então, chega o Carnaval. O bloco passa na rua, o país vibra com isso, ainda com um toque a mais que a Fernanda Torres colocou por estar na premiação do Oscar. Mas agora sinto um compasso diferente. Escrevo esta coluna ao som do bloquinho que ecoa ao lado da minha casa, na Gentilândia — o mais jovem e velho da atualidade, o primeiro marco no currículo folião para tantas gentes. Nos próximos dias, talvez eu me lance à multidão, ou talvez simplesmente abra a janela e deixe que a melodia distante me lembre como é boa essa festa. O meu entusiasmo pode ter suavizado, mas ainda tá aqui. Mesmo não estando no meio do bloco, ainda me sinto convidada.
Enquanto isso, hoje, dia 27 de fevereiro, aproveito a véspera de mais um ano, o de número também 27. E que ele venha, com tudo o que tiver que ser. Com confetes e silêncios, com abraços e despedidas, com a certeza de que seremos sempre um pouco do que já fomos e um tanto do que ainda podemos ser. O futuro, que um dia parecia tão distante, agora caminha na minha direção. E eu sigo fazendo planos, sabendo que a vida adora rir deles.
Então, “nós vamos sorrir. Sorriam!”.