
Certamente você já tenha escutado falar ou mesmo tenha lido sobre esse conceito intitulado de Pacto da Branquitude. Acredite, isso é real e funciona muito bem em nosso país e no mundo.
Basta dar uma olhada rápida à nossa volta para percebermos a pluralidade da população. Pessoas diversas indo e vindo, motoristas de ônibus, motociclistas, ciclistas, casais, uma mistura de rostos. É dessa observação, buscando capturar o que nos cerca, que é possível compreender e identificar os reflexos e resultados desse Pacto Narcísico.
Infelizmente, e falo isso com um sentimento amargo no peito, a escravidão e todo o período da colonização deixaram uma herança de privilégios que favorece principalmente as pessoas de pele branca. As instituições da sociedade, sejam estas privadas ou públicas, regulamentam e transmitem um modo de funcionamento muito curioso: um quadro de funcionários (lideranças) majoritariamente masculino e branco.

Repito: ao observarmos o espaço à nossa volta, é fácil identificar que: lugares vistos como subalternizados, perigosos e violentos, são ocupados, na grande maioria, por pessoas de pele negra. Quanto mais forte a melanina, maior as chances de ver o corpo apodrecer nos vielas periféricas das grandes cidades, o que Carolina Maria de Jesus chamou de “Quarto de Despejo”.
A sociedade brasileira encara a favela como um espaço marginalizado, e essa marginalização das comunidades é criada pelo próprio Estado, um plano político, estruturalmente funcionando em toda a sociedade: Subalternizar e conflitar pessoas com base no gênero e fenótipo racial. Um pacto branco que se arrasta até hoje!
Tendo testemunhado diversas recusas de pessoas negras em processos seletivos laborais, Maria Aparecida da Silva Bento, também conhecida como Cida Bento, doutora em psicologia e co-fundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, trouxe esse conceito de ‘’Pacto da Branquitude’’, buscando denunciar a rede de benefícios experienciada pela branquitude e as inúmeras consequências para as relações sociais no Brasil.
Cida Bento, por meio de seus muitos estudos no campo da questão racial e das relações sociais, propõe que coloquemos o dedo na ferida, tendo como objetivo final uma compreensão da sociedade branca brasileira, a branquitude. Branquitude e Masculinidade são escolhas, assim afirma Cida Bento.
“É evidente que os brancos não promovem reuniões secretas cinco da manha para definir seus privilégios e excluir os negros. Mas é como se assim fosse”. A frase está na contracapa de O Pacto da Branquitude.
Esse pacto não verbalizado entre pessoas que se consideram iguais em beleza e humanidade, faz com que a população branca não reconheça ou mesmo perceba, a rede de privilégios que lhe beneficiam. Quando se pensa o racismo como uma anomalia estrutural e sistêmica, é fácil de identificar a extensa rede que separa pessoas em grupos raciais.
Essa racialização ocorre de maneira diversa em toda a sociedade brasileira. O Estado, as corporações policiais, as instituições, todos atuam muito bem no quesito racialização de corpos. Por isso, é importante o aprofundamento na história desse pacto. É preciso reconhecer, antes de mais nada, as inúmeras narrativas que buscam justificar essa herança escravocrata de privilégios.
Durante quase quatro séculos, o Brasil viveu sob um sistema de exploração humana com base na cor da pele. Quase quatro séculos de escravidão e expropriação de pessoas negras. Essa mancha na história da construção do Brasil, assim como do mundo, é uma herança que define lugares para brancos e negros. Entretanto, é de certo afirmar que nem todos os indivíduos brancos ocupam lugares de destaque na sociedade, mas todos os brancos, todas as pessoas de pele clara, carregam consigo essa herança de privilégios, permeando assim, todo um imaginário social: o sujeito branco precisa ocupar espaços de destaque, de beleza e competência. Será mesmo?
A branquitude, ao se manter como a norma invisível, reforça a ideia de que todas as possíveis conquistas que se alcança ao longo da vida (individuais) são frutos apenas do mérito, dessa tal falácia meritocrática, desse sonho fantasioso que permeia a mente da população brasileira.
A meritocracia é uma pseudo-narrativa que contribui para a estigmatização de corpos. Um discurso perigoso e que desconsidera a construção social da sociedade atual. Afinal, o discurso meritocrático ignora as barreiras estruturais que dificultam o acesso de grupos historicamente marginalizados.
O Brasil vive em um mito de democracia racial e meritocrática. O ponto de partida não é o mesmo para todos. É evidente que pessoas negras enfrentam obstáculos para ascender na esfera social, e esses obstáculos se apresentam desde o nascimento. Seja por meio das inúmeras dificuldades de se ingressar no ensino superior ou pelo processo discriminatório no mercado de trabalho, o negro brasileiro enfrenta infortúnios diversos. Que fique claro: se a sociedade fosse verdadeiramente meritocrática, o esforço individual seria o único critério para o sucesso.
Quando tomamos os dados e estatísticas para compreender a relação das ações policiais e o resultado disso, podemos notar que jovens negros são abordados com maior frequência, perseguidos e até brutalmente assassinados pela polícia – ainda que não tenham cometido crime algum. Com isso, fica escancaradamente evidente que a equidade de oportunidades é uma falácia ilusória. Uma mentira. Um delírio. É indiscutível que a letalidade policial é desproporcionalmente maior contra a população negra.
Dados do FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA mostram que a cada dez mortos pela polícia, cerca de oito são negros. Essa ação de letalidade policial reflete uma sociedade estruturalmente alicerçada no Pacto da Branquitude, onde a segurança não é garantida igualmente para todos. Se a cor da pele é considerada um parâmetro para definir a forma como o Estado trata o cidadão, nos resta dizer que o mérito nunca será o único fator determinante para se alcançar um lugar de sucesso.
Há um só caminho a ser feito para que coloquemos todo esse sistema racista por terra. Esse caminho é o do debate. É preciso trazer para os dias atuais, nas rodas de conversa com os amigos e pessoas próximas, a discussão sobre a complexidade da questão racial.
Precisamos falar sobre branquitude e seus privilégios enraizados por um sistema de falsas crenças que dilaceram e inviabilizam corpos negros. Essa é uma das etapas necessárias para que possamos construir a consciência racial na sociedade brasileira e no mundo, pois a questão do racismo não é exclusiva do Brasil, mas uma problemática sistêmica em nível global.
Os avanços em políticas públicas direcionadas para grupos minoritários e marginalizados, só é possível graças aos movimentos sociais, estes, por sua vez, se fortalecem através do pleno desenvolvimento do letramento racial. Precisamos assegurar as conquistas que já alcançamos no que se refere a proteção social e cultural dos que são vítimas desse brutal sistema discriminatório.
Não podemos nos permitir caminhar para trás nesse processo civilizatório. A criminalização do estilo de vida periférico não pode ser um fator decisivo para vida e morte. Para que o Brasil, terra de muita gente e de uma cultura absurdamente diversificada, caminhe para o progresso social, uma sociedade mais equitativa, é necessário questionar essa tal lógica da meritocracia e reconhecer, de uma vez por todas, o papel da branquitude na manutenção de desigualdades.