Patriarcado: a base da sociedade Brasileira

Texto de Lucas Lima, aprendiz da religiosidade afrodiaspórica, escritor e defensor da pauta racial
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‘’A violência contra as mulheres nasce numa estrutura patriarcal’’ – afirma a psicóloga clínica Teresa Cristina Bruel dos Santos, integrante de organização feminista de Porto Alegre / Foto: Divulgação

Vivemos numa sociedade alicerçada em uma profunda e enraizada cultura machista que dilacera os corpos femininos. O Brasil apresenta um dos maiores índices de violência contra a mulher, uma verdadeira epidemia de desumanidade.

Os números são impressionantes e assustadores: a Justiça brasileira recebe 2,5 mil processos de violência contra a mulher por dia, segundo os dados disponíveis pelo Conselho Nacional de Justiça. Ainda no ano de 2024, a cada dois dias uma mulher foi vítima de algum tipo de violência no Ceará.

Foram cerca de 207 casos registrados ao longo do ano, maior número observado no Estado desde o ano de 2020. Considerando todas as demais regiões monitoradas, foram registradas 4.181 mulheres vitimadas. Dentre os inúmeros crimes, 531 foram classificados como feminicídios, o que significa dizer que, a cada 17 horas, uma mulher morreu em razão do gênero. Até quando? (Dados divulgados pela Rede de Observatórios da Segurança).

Uma sociedade pautada muito no masculino, nessa vã ideia de que tudo pertence ao homem, é resultado direto de uma construção social que normaliza a violência racial e de gênero. As relações afetivas, alimentadas por essa cultura machista, colocam a mulher como um objeto sem alma, sem pertencimento próprio, o que contribui para a crescente onda de violência física e dos inúmeros discursos de ódio que objetificam o corpo feminino e normalizam a violência doméstica.

No Brasil, terreno fértil para esse cenário, prevalecem as relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres e todos os demais sujeitos que não se encaixam no chamado padrão normativo de raça, gênero e orientação sexual. Levando em consideração essa perspectiva, o homem branco cisgênero e heterossexual, acumula incontáveis benefícios que o colocam no topo da pirâmide social, excluindo todos os outros corpos que fogem dessa visão patriarcal.

O patriarcado, sendo este um sistema social no qual o poder e a autoridade são historicamente concentrados nas mãos dos homens, se manifesta em diversas outras esferas da vida, como no meio político, no mercado de trabalho, na rede familiar, na cultura e também na religiosidade conservadora. É importante destacar que existem alguns fundamentos no qual o patriarcado se baseia e se estrutura, ganhando ainda mais força por meio dos diversos discursos religiosos que reduzem a mulher ao trabalho doméstico e a submissão em relação ao seu parceiro.

O uso desenfreado de textos bíblicos para justificar e validar os diversos abusos, são um movimento covarde e horrendo, praticado por líderes religiosos conservadores e fundamentalistas. Esse movimento desconsidera o papel feminino na construção de valores morais e éticos para a sociedade. Algo preocupante e alarmante!

É indiscutível que o patriarcado tenha crescido e continue sendo mais violento por conta da escravidão, que impôs não só a dominação masculina, mas também a exploração extrema de mulheres negras, tanto como trabalhadoras forçadas quanto como vítimas de violência sexual. Essa objetificação do corpo feminino reduz a mulher à condição de objeto sexual, e todo esse processo banaliza a imagem feminina, dificultando a luta por equidade de gênero. Como dito, a mulher negra sofre uma violência ainda mais dilacerante, vendo seu corpo ser resumido a um contexto exclusivamente sexual: ‘’A nega do corpo escultural. A nega da cor do pecado’.’

Essas frases retratam o imaginário masculino da sociedade, refletindo uma cultura de exploração sexual e de abuso. A chamada cultura do estrupo: esse pensamento é passado de geração em geração, alimentando-se com o passar dos anos, através de discursos que colocam o corpo feminino em uma posição de neutralidade, negando-lhe o direito à vida. Propagandas e anúncios publicitários, tal como a valorização da beleza física, contribuem para a objetificação da mulher.

A pensadora filósofa Simone de Beauvoir esclarece, em seus escritos cuidadosamente bem elaborados, que os fatores biológicos, ontológicos e culturais foram a peça chave para que o patriarcado, essa absurda base de dominação do homem sob a mulher, se fortalecesse ao longo dos anos. Para ela, esse sistema de caráter machista, enraizou-se na sociedade, e nesse ponto ela fala em nível global, por meio de códigos, leis e até livros sagrados, todos estes escritos por homens e nos quais trazem a ideia de inferioridade do ser feminino, de plena submissão, de obediência, de subalternidade.

O mais grotesco, diria eu, é vermos a sociedade atual comportando-se tal como a descrição de Simone, algo que causa um assombro íntimo. Até que ponto chegamos em meio a essa construção do espaço social? O mundo vai conseguir defender as muitas pautas que são urgentes para o bem estar de grupos minoritários? Precisamos, ainda que nos seja trabalhoso, quebrar os muitos dogmas que possam estar armazenados em nosso inconsciente, e que atrapalham o desenvolvimento do senso crítico, dessa ânsia por mudanças reais no cenário político, social, cultural e econômico.

Lembremos que a violência contra a mulher não é algo recente, mas que ganhou maior visibilidade na década de 1970 por meio dos inúmeros e importantes movimentos feministas que colocaram em cheque a estruturação patriarcal da sociedade. Foram estes movimentos, impulsionados por mulheres de distintas classes sociais, que permitiram o ingresso da figura feminina na esfera pública, conquistando o direito à participação política e ao voto.

Mas, ainda que conquistando esses espaços, a mulher hoje enfrenta dificuldades diversas, uma vez que o patriarcado vem se adaptando para manter seu pleno domínio. Mesmo vivendo em um mundo onde a liberdade sexual é melhor aceita, o homem continua sendo estimulado a explorar sua sexualidade, enquanto a mulher é constantemente reprimida, desvalorizada e até, acredite ou não, demonizada por grupos radicalmente conservadores.

Ao lembrarmos o período da colonização, veremos que os povos originários latino-americanos tinham uma outra forma de organização social e uma visão diferente sobre a questão de gênero e as relações entre os indivíduos. Essa organização coloca em dúvida a construção da sociedade brasileira atual, nos lembrando que a colonização europeia foi a responsável por trazer e instaurar o patriarcado tradicional em todo o território brasileiro, assim como também no mundo.

‘”Esse modelo do patriarcado branco, burguês, cristão, cis, hetero, ele vem com as invasões e com a construção desse projeto da colonialidade moderna pras Américas. No nosso passado, pré-colonização, gênero e raça eram experimentados de outras formas, a partir de outras dimensões, ainda que existissem relações hierárquicas. Mas não eram nos moldes do patriarcado tradicional” – afirma Marlise Matos, professora associada do Departamento de Ciência Política e coordenadora executiva do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem)

É preciso um trabalho sério de auto-observação. O que estamos fazendo com nosso tempo? Estamos defendendo aqueles que são colocados para fora de campo? Essa partida é coletiva, deve-se haver fortalecimento comunitário. Questões de raça e gênero precisam e devem ser discutidas. O mundo avança, novos líderes se levantam, precisamos nos organizar, defender a luta pela vida, a luta por dignidade.

A questão feminina e de gênero é uma questão que abrange tudo dentro disso que chamamos ser sociedade ou Estado Democrático de Direito. O patriarcado já mostrou sua força dominadora e é preciso encarar essa problemática de frente. Esse sistema formado por homens de ego inflado, precisa ser dissolvido do meio social, só assim teremos uma livre e real experiência do que é a vida. A desconstrução desse sistema exige a criação e o fortalecimento de políticas públicas verdadeiramente eficazes, tal como mudanças na base cultural da sociedade, rompendo com essa cultura do estupro e do assédio. Precisamos falar sobre a despatriarcalização do Estado brasileiro e a urgência por mudança na estrutura política, só assim conseguiremos alcançar a plena equidade de gênero.



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