
O racismo assume diversas faces, e uma delas é a hipersexualização do corpo negro, uma forma cruel de objetificação que reduz homens e mulheres negros a instrumentos de fetiche. Essa prática transforma seus corpos em objetos de prazer, colocando-os em um lugar desumanizado, onde são vistos apenas como meios para entretenimento carnal.
Trata-se de uma fantasia racializada e vulgar, que perpetua estigmas e nega a complexidade e a humanidade dessas pessoas. Nesse cenário, o sexo deixa de ser expressão e passa a ser violência simbólica, roubando a alma de quem, além de enfrentar as múltiplas formas do racismo, ainda precisa lutar contra essa imagem distorcida e opressiva.
A hipersexualização do corpo negro é fruto direto da colonização. Durante os mais de três séculos de escravidão no Brasil, a mulher negra foi colocada em um lugar de subserviência, sendo violentada sexualmente e explorada de diversas formas. O homem negro, por sua vez, ainda que sofrendo de forma diferente, também foi afetado pela hipersexualização. A escravidão se encarregou de colocar o corpo negro como uma propriedade, sendo vistos como portadores de uma sexualidade selvagem e agressiva. Essa visão foi perpetuada ao longo dos anos, enraizando-se no imaginário popular, seja por meio do cinema, da publicidade ou mesmo da cultura de massa.

Para o professor e doutor em Antropologia Alex Ratts, que se dedica ao estudo das masculinidades, os corpos negros são constantemente racializados e fragmentados. Estão presentes em todos os espaços, mas quase sempre vistos por lentes distorcidas. As mulheres negras, alvos centrais da opressão e do racismo estrutural, conhecem de forma profunda o peso destrutivo da permissividade com que seus corpos são tratados, frequentemente vistos como públicos e disponíveis.
Com os homens negros, a realidade também é marcada pela violência simbólica. Além da brutalidade física e do encarceramento em massa, eles são sexualmente violentados pela forma como são retratados: como símbolos de uma sexualidade viril e falocêntrica. Essa representação, moldada pelo olhar branco, sustenta uma estrutura racista que invalida suas experiências afetivas e os reduz a corpos hipersexualizados, meros objetos de desejo.
Durante os anos de escravidão, a mulher negra teve seu corpo invadido pelo homem branco. O estupro era uma prática comum. Seus corpos não eram apenas uma fonte de trabalho, mas também de prazer e reprodução. Essa visão violenta e nojenta, como dito anteriormente, atravessou a abolição da escravidão e se perpetuou ao longo dos anos, enraizando-se no imaginário coletivo da sociedade brasileira.
Tomemos como exemplo a figura da “mulata”. É possível notar que durante o período carnavalesco, a mídia e os muitos meios de entretenimento televisional, exaltam e retratam a figura da mulher como símbolo maior da sensualidade brasileira. Essa construção não valoriza a cultura ou a ancestralidade, mas transforma o corpo da mulher negra em um troféu sexual para consumo do olhar branco. Toda essa exposição coloca o desejo masculino branco em plena atividade. Essa fantasia reforça o apagamento da dor, da história e da dignidade humana dessas mulheres. Com tudo, é certo afirmar que, embora o carnaval apresente uma valorização do corpo negro, essa valorização também vem acompanhada de uma onda de violência: exotismo e racismo.
O estereótipo do “negão” é outro resquício da escravidão. O patriarcado branco se via e se vê constantemente ameaçado pela figura do homem negro. Para Sidney Santiago, pesquisador da afetividade negra e questões de gênero, a fragmentação do corpo negro acarreta na tentativa de anulação das subjetividades e recusa do processo afetivo. É a partir do olhar do outro que o homem negro se molda socialmente, sendo afetado diretamente pela hipersexualização de sua imagem.
O homem negro, assim, é condicionado a ser mais forte, tanto fisicamente quanto psicologicamente, e mais viril que os demais homens que o cercam. Esse exotismo é a clara fantasia do fetiche no corpo negro e, claro, a idealização do pênis como um instrumento de dominação sexual e símbolo da animalização do desejo.
Para a escritora e ativista afro-americana Bell Hooks, em seu texto intitulado de “Penis Passion”, a escritora fala sobre como a visão do falo enquanto ferramenta de força é conservadora, racista e estigmatizada. Com tudo, ao falarmos da hipersexualização do corpo negro, estamos falando diretamente do órgão masculino. Ela sugere, ainda em seu texto, uma ressignificação sexual como forma de libertação de homens e mulheres.
Essa ressignificação é uma poderosa ferramenta de intervenção que pode questionar o pensamento patriarcal e, ajudar na valorização, ou melhor, no fortalecimento dos laços afetivos da mulher negra e do homem negro na sociedade.
Sueli Carneiro, filósofa, escritora e uma das ativistas negras mais influentes de nosso tempo, fala da erotização do racismo. Sueli analisa como o corpo negro foi historicamente desumanizado e objetificado. No caso das mulheres negras, essa desumanização foi muitas vezes mascarada por uma erotização que as colocava como símbolo de uma sexualidade exótica. Não trata-se de uma valorização da beleza negra, mas de uma forma de dominação que as torna um constante alvo de fetichização.
Essa erotização racista, desumana e animalesca, é uma continuidade do processo colonial. Esse processo se reinventa hoje nas redes sociais, no entretenimento e até mesmo nas relações interpessoais mais cotidianas. O desejo torna-se uma disputa política, imposta pela branquitude, definindo o que é belo e digno de afeto. A subalternização de mulheres negras é um plano político, imaginado, pensado e idealizado pelo sujeito branco. É uma forma de violência e exclusão que alimenta o racismo estrutural, seja no Brasil ou em qualquer outra região do mundo.
A hipersexualização é um problema de quem o faz, não de quem se mostra. O homem negro, assim como tambem a mulher negra, não precisam se encaixar nos estereótipos criados pela sociedade. Exercer a sexualidade é um direito de todos nós, seja qual for a sua cor, gênero ou orientação sexual. Quando falamos sobre hipersexualização de corpos negros, não se trata de condenar o desejo ou a admiração estética, mas de refletir sobre os mecanismos racistas que orientam esse desejo.
O desejo, o interesse, tudo isso é normal e faz parte das relações humanas. Hipersexualizar um corpo com base em uma construção racista e erotizada, é roubar a humanidade daquele corpo, tirar a condição de humano. Especular sobre o tamanho do pênis sem nunca antes tê-lo visto nu, sobre o desenho do corpo negro feminino, tudo isso é fruto direto da colonização e do racismo estrutural. O corpo negro masculino, afirma o antropólogo Osmundo Pinho, é visto fundamentalmente como um corpo para o trabalho e para a atividade sexual. Roubam-lhe até mesmo a alma. É preciso trabalharmos essa desconstrução sexual e erotizada.
A autoestima negra ainda é muito fragilizada, e muitas vezes acaba sendo moldada por essa visão sexualizada pela branquitude. Desde a mulher negra que achou que ninguém queria amá-la, até o homem que não assume uma mulher negra, tudo isso é fruto desse covarde sistema que classifica pessoas com base na sua cor de pele. Quanto mais retinta for sua pele, maior e mais cruel será seu atravessamento racial. A luta contra o racismo é uma luta travada no coletivo. A questão racial não diz respeito somente ao povo negro, mas também ao sujeito branco que o racializa. Nessa constante luta antirracista, expressões como ‘’nego bom de cama’’, ‘’esse nego deve ter o pênis enorme, ‘’essa nega tem uma bunda grande’’, ‘’negona de tirar o folêgo’’, e tantas outras, precisam ser excluídas do nosso imaginário, dando lugar a uma justa e real compreensão do que é o racismo e suas muitas facetas.
Esses vocábulos foram ressignificados, reproduzidos e atualizados nas telenovelas, nas inúmeras campanhas publicitárias que consumimos diariamente, na indústria pornográfica, nas plataformas digitais, nas letras de músicas e até mesmo nos memes.
A brilhante escritora e ativista negra Djamila Ribeiro nos alerta para essa construção racista que posiciona a mulher negra em um lugar de descarte sexual, ao mesmo tempo em que nega ao homem negro o direito ao afeto e à construção de vínculos afetivos. Djamila, uma das intelectuais negras mais influentes da atualidade, propõe a afetividade como caminho para romper com os estigmas que recaem sobre os corpos negros.
Combater a hipersexualização do corpo negro é, portanto, uma tarefa urgente para descolonizar os afetos, isto é, romper com as lógicas coloniais que moldam quem merece ser amado, respeitado ou desejado. É preciso promover a decolonialidade das relações humanas, desconstruir estereótipos e instaurar relações mais justas, humanas e respeitosas.
A luta antirracista precisa ser coletiva. Restituir ao corpo negro sua inteireza – sensível, política, amorosa – é recusar o desejo colonizado que insiste em transformá-lo em mercadoria.