A estética como ética da vida: o projeto Farol Encantado e o design periférico das escadarias do Mucuripe

Texto de Noelle Siebra, psicóloga, apaixonada por cinema, música e cultura urbana
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“Até os moradores que a princípio não estavam tão receptivos, observam as outras casas coloridas, interagem com o movimento artístico e começam a desejar a beleza em seus próprios muros” / Foto: Divulgação

O bairro do Mucuripe passou por transformações geográficas, sociais, culturais e econômicas em sua história desde seus primórdios enquanto vila de pescadores. Atualmente faz parte das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), instrumento que visa garantir o direito à moradia digna.

O território é amplamente visado e atacado pela especulação imobiliária e pelo avanço dos grandes prédios na faixa litorânea, e a comunidade entende fortemente sua realidade e as disputas políticas que cercam o território.

Com base numa compreensão dialética do contexto comunitário, que inclui o ambiente e suas múltiplas relações, entendemos o lugar como um espaço vivo, que exerce influência ativa sobre o indivíduo, ao mesmo tempo em que é transformado pela ação desse sujeito.

Essa relação envolve aspectos físicos, históricos, sociais, culturais e psicológicos, podendo ser mais ou menos participativa e fortalecedora tanto para o indivíduo quanto para o coletivo.

Dito isso, o bairro enfrenta atualmente um cenário de violência contínua, marcado por disputas entre facções e intervenções policiais ostensivas. Esse contexto é sintoma, e não causa, de fatores estruturais relacionados ao território, refletindo-se na dimensão subjetiva, já que a desigualdade social gera sofrimento psíquico intenso e constante.

Áreas como o Mucuripe estão inseridas na pobreza multidimensional, que vai além da questão econômica e se caracteriza pela negação do poder de agir e de representar-se, pela dificuldade em apropriar-se da produção material, cultural e social do seu tempo, de ocupar o espaço público e de manifestar desejos e afetos (SAWAIA, 2011).

Em contrapartida a esse cenário, o território insiste em não somente sobreviver, mas possibilitar caminhos de vida. O coletivo Farol Encantado, que objetiva revitalizar e requalificar o território pelas mediações da arte e da estética, funciona como uma dessas estratégias que vislumbram a emancipação política e a vida digna.

Idealizado pelo artista Márcio Gabriel, conhecido como Pig, em parceria com outros artistas, o projeto começou na Escola de Ensino Médio em Tempo Integral (EEMTI) Matias Beck e se expandiu para os muros e escadarias do bairro.

Atualmente, o coletivo mantém parceria com a Metasse, desenvolvendo o Ateliê Design Periférico, que integra as ferramentas do design às vivências periféricas, com o objetivo de criar arte em colaboração com a comunidade.

Além disso, o projeto está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, que visam eliminar a pobreza extrema e a fome, garantir educação de qualidade para todos ao longo da vida, proteger o planeta e promover sociedades pacíficas e inclusivas até 2030.

O projeto afirma o design para além da ferramenta mercadológica e do produto, defendendo o Meta Design, que compõe todo o processo criativo e tece rede de relações. A ideia atua sempre a partir da mediação territorial do Castelo Encantado, com testemunho da memória e afeto.

A artista, estudante e arte educadora Rassanth teve a experiência de participar das pinturas. Na ocasião, ela afirma: “Sou arte-educadora e graduanda em licenciatura, e já ouvi de um aluno o quão massa era pra ele pegar um ônibus, seguir pra praia e ver algum pixo, algum grafite dele naqueles muros. Acredito que essa linguagem da arte urbana consiga munir os jovens, sobretudo da periferia, do sentimento de pertencimento e territorialidade. O sentimento de ter, literalmente com as próprias mãos (com um Jet, tinta ou pincel) o fazer-acontecer-ser-sujeito”.

Os artistas, nesse trabalho de articulação comunitária, fazem pesquisas nas ruas, conversam com os moradores sobre o projeto e fortalecem vínculos. Até os moradores que a princípio não estavam tão receptivos, observam as outras casas coloridas, interagem com o movimento artístico e começam a desejar a beleza em seus próprios muros.

A artista fala ainda que: “As pessoas iam descendo as escadas pra trabalhar, ou subindo depois de uma praia, e comentavam “tão fazendo arte”, “essa cor é linda”, “obrigada pelo cuidado”, “eu quero pintar também!”. Essas vozes iam se misturando com o som do vento, com as conversas ao redor, com o balançar as latas e dos jets, com a concentração no traço e na tinta. E no fim era uma coisa só. Era mesmo, como disseram os meninos do Castelo… Encantado. Era encantado. Encantamento”.

O psicólogo Vygotsky (1925) concebe a arte como uma forma de expressão e modo de vida, desenvolvendo um método de análise único que não reduz a obra apenas ao criador ou ao espectador, mas a examina em sua essência. Sob sua perspectiva materialista histórico-dialética, a arte jamais é fruto exclusivo de uma criação individual, sendo antes um produto social e cultural.

Para ele, a arte está ligada ao desenvolvimento psicossocial, envolvendo elementos como imaginação, criatividade, sensibilidade, emoção, memória e linguagem; a estética, por sua vez, é vista como uma experiência transformadora, capaz de promover novos modos de subjetivação e abrir espaço para a alteridade.

Com base nessa visão, Vygotsky refletiu sobre o papel da educação estética na vida cotidiana, que não se limita ao contato com obras ou ao aprendizado técnico, mas se manifesta na vivência estética diária. Caminhar pelas ruas da comunidade e encontrar imagens artísticas que despertam identificação e pertencimento exemplifica perfeitamente essa ideia.

Como afirma o autor: “a vivência estética cria uma atitude muito sensível para os atos posteriores e, evidentemente, nunca passa sem deixar vestígios para o nosso comportamento” (Vygotsky, 2001, p.342). A educação estética é uma oportunidade de transfiguração da realidade pela mediação da arte.

Um dos aspectos mais valiosos que se mostram como resultado da experiência do coletivo é que, a partir dessa experiência estética e artística, que mobilizou tanto interesse, trocas, afetos e reflexões, os moradores fortaleceram o sentimento de comunidade, e demonstram interesse em ocupar espaços da política pública, pois sentem a necessidade não de serem representados, mas de representarem a si mesmos naquilo que diz respeito às suas próprias realidades.

Viver a arte no cotidiano é capaz de unir os sentimentos coletivos e transformá-los em luta. A educação estética desloca o sujeito do fatalismo para o protagonismo e participação ativa. “A arte urbana e a ocupação dos muros dessa cidade são a minha certeza. É a arte que vibra e convence os outros a vibrar também, a pertencer também. É a arte que sensibiliza e faz contrapor a lógica colonial, corta o tempo linear e costura feito retalho de outro jeito. Conta outra história, outra narrativa. E conta melhor, porque quem conta somos nós”. (Rassanth).

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