“Entre dois mundos” e o peso das histórias alheias

Texto de Lucas Paiva, Mestre em Comunicação e jornalista com experiência em metodologia de pesquisa
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No enredo, acompanhamos Marianne Winckler, vivida por Juliette Binoche, uma renomada escritora francesa que decide se infiltrar, por seis meses, no mundo do trabalho precarizado / Foto: Pandora Filmes

Com 32 anos de idade completados, já aprendi que não posso me arriscar a ser crítico de cinema, apesar de uma formação complementar na área. Essa não é a minha praia, e reconheço que há colegas muito mais capacitados do que eu nesse métier. Leio-os e aprecio seus escritos com genuíno entusiasmo, pois sei que eles enxergam ângulos e detalhes que me escapam. Ainda assim, não consigo evitar a tentação de escrever sobre Entre Dois Mundos (2021), segunda incursão cinematográfica do escritor e cineasta Emmanuel Carrère, autor dos fascinantes Yoga e V13, dentre outros.

Não me furtarei a essa escrita porque há algo de quase físico no ato de respirar fundo após um filme intimista que nos arrebata em silêncio. Na minha sessão, havia apenas três pessoas — uma delas, minha fiel escudeira. A atmosfera rarefeita da sala parecia amplificar cada som e cada gesto projetado na tela. O filme, desde os primeiros minutos, mexeu com minhas emoções: teceu uma relação comigo durante pouco mais de cem minutos e, ao final, despediu-se com a mesma delicadeza abrupta que a protagonista exibe em sua própria jornada. Isso não é um spoiler para quem leu a sinopse, mas é, talvez, a chave para compreender a proposta.

No enredo, acompanhamos Marianne Winckler, vivida por Juliette Binoche, uma renomada escritora francesa que decide se infiltrar, por seis meses, no mundo do trabalho precarizado. Seu objetivo: investigar e registrar as condições da classe trabalhadora no norte da França. Confesso que, ao ouvir essa premissa, meu primeiro impulso foi um suspiro cético: “Isso não vai dar certo.” Ainda assim, segui adiante para ver até onde essa experiência se sustentaria sem desmoronar na artificialidade.

Marianne consegue um emprego como faxineira numa balsa que cruza o Canal da Mancha, no porto de Ouistreham. Essa embarcação, quase um personagem à parte, impõe um desafio colossal: 230 cabines para limpar em 90 minutos, algo em torno de quatro minutos por quarto. A urgência é implacável — ou se arruma, ou outra pessoa assume. Não há pausas contemplativas, não há tempo para se perder. E, nesse compasso acelerado, o filme nos obriga a encarar um trabalho invisível, que sustenta silenciosamente a engrenagem do turismo e do transporte marítimo.

Aos poucos, a obra constrói um dilema moral sutil, mas implacável. Marianne convive com mulheres que saltam entre empregos temporários e períodos de desemprego, que cuidam de filhos sozinhas, que se apoiam umas nas outras para suportar a dureza cotidiana. Nesse convívio, ela cria laços verdadeiros. Mas o espectador percebe, cada vez mais, que há uma linha de tensão inevitável: até quando ela manterá sua identidade oculta? Em que momento revelará que está ali como observadora infiltrada e não como uma igual?

É nesse ponto que Entre Dois Mundos mostra sua força. A sutileza do roteiro e da direção reside no fato de que a própria Marianne subestima o peso emocional dessa convivência. Ela acreditava que poderia entrar e sair sem deixar marcas, mas, ao tentar estetizar a vida dessas mulheres — condensando em narrativa algo que, para elas, é uma luta diária sem roteiro —, acaba tocando em algo mais profundo. Sua posição privilegiada a permite partir; as outras, não.

E é aí que o filme se instala no espectador como uma ferida pequena, mas insistente. Porque, no fundo, não estamos falando apenas de uma escritora e seu projeto: estamos falando da fragilidade dos vínculos em um mundo desigual, onde as histórias de quem trabalha nas sombras raramente chegam à luz sem passar pelo filtro de alguém de fora.

Ao final, saí da sessão com a sensação de que o filme não oferece catarse — e talvez essa seja a sua maior honestidade. Ele não promete resolver o dilema moral que propõe. Apenas o expõe, com um olhar quase documental, e nos deixa com a pergunta incômoda: até que ponto é possível contar a história do outro sem se apropriar dela?

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