
A Cannabis Sativa, nome científico da planta popularmente conhecida como maconha, é uma erva extremamente versátil, cujas diferentes partes podem ser utilizadas para produzir uma ampla variedade de produtos medicinais, alimentícios, cosméticos e até industriais. Entretanto, apesar dessa plurivalência, a maconha ainda é profundamente estigmatizada pela sociedade brasileira. Dado o alto nível de conservadorismo social e de fundamentalismo pseudocientífico, a planta continua a ser demonizada, em total contradição com os avanços da comunidade científica internacional. Essa estigmatização reforça a chamada “guerra às drogas” como instrumento de controle social, evidenciando uma política desumana por parte das autoridades brasileiras e um claro descaso com a saúde pública.
Com o passar dos anos, a maconha tem ganhado espaço nos estudos científicos, e as pesquisas sobre seu potencial terapêutico, farmacológico, nutricional e industrial se multiplicam ao redor do mundo. Hoje, doenças como autismo, câncer, Alzheimer, dor crônica, espasticidade muscular, epilepsia, estresse pós-traumático, glaucoma, transtornos de ansiedade e até lesões musculares podem ser tratadas com o uso regulado de CBD e THC. Em tratamentos oncológicos, por exemplo, a cannabis medicinal ajuda a aliviar sintomas como náuseas e vômitos causados pela quimioterapia. A neurologista e professora da Unigranrio, Vanessa Gil, afirma que a cannabis possui propriedades antieméticas que reduzem esses sintomas e ainda estimulam o apetite em pacientes com perda de peso.
Todavia, apesar dos avanços médicos e científicos, uma barreira persistente continua a marginalizar o uso da cannabis no Brasil: o viés racial. Corpos negros seguem sendo os principais alvos da política antidrogas implementada por Estados e Municípios. O preconceito, historicamente enraizado, remonta a mais de um século.

“É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Serão considerados infratores os que forem encontrados com a referida substância em locais públicos ou comercializando-a.”
(Nome popular da maconha à época)
“Maconha em pito faz negro sem vergonha.”
(Frase comum no imaginário social do final do século XIX e início do XX)
O Brasil — esse suposto Estado Democrático de Direito que ainda insiste na fantasia da democracia racial — foi o primeiro país do mundo a criminalizar o uso da cannabis. Essa legislação, resultado direto do racismo estrutural, associava pessoas escravizadas ou recém-libertas à criminalidade. A proibição do uso do “pito do pango” foi decretada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1830. Mesmo quando utilizada em rituais religiosos, a erva era alvo de repressão violenta por parte do Estado.
A maconha é utilizada há milênios com fins medicinais, espirituais e recreativos. Povos africanos do Congo, Etiópia e Angola a empregavam em rituais religiosos como forma de cura e conexão com o Sagrado. Esse uso foi trazido ao Brasil pela diáspora africana, por meio do tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. A história da maconha está intimamente ligada à formação social brasileira — desde o uso do cânhamo nas cordas das embarcações coloniais até sua aplicação terapêutica.
Recebendo inúmeros nomes ao longo do tempo — como haxixe, cânhamo, diamba, fumo de negro, pito de pango, liamba, cânhamo-da-índia — a planta ficou conhecida no Brasil como “maconha”, nome cuja etimologia vem do quimbundo, língua angolana falada em território africano.
O Estado brasileiro sempre esteve comprometido com o controle social e a repressão cultural. Um exemplo emblemático é o médico Rodrigo Dória, da Universidade Federal da Bahia, que, em 1915, no Segundo Congresso Científico Pan-americano, apresentou um estudo eugenista intitulado “Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício”. Nele, Dória alegava que a cannabis fora introduzida no Brasil pelos negros escravizados como forma de vingança contra os brancos. Além disso, referia-se ao uso religioso da planta como “barato alucinógeno”, escancarando seu racismo religioso e pseudocientífico.
A política proibicionista de drogas no Brasil segue uma lógica importada dos Estados Unidos, baseada em convenções internacionais sem respaldo científico. A proibição da maconha foi deliberadamente arquitetada por autoridades brasileiras, e hoje é sustentada por uma “guerra às drogas” que alimenta o encarceramento em massa da juventude negra. Essa política racista, iniciada pelo velho “Tio Sam”, transformou o corpo negro em alvo, passível de exclusão, estigmatização e morte. O proibicionismo, desprovido de base científica, serviu como ferramenta geopolítica e econômica da influência norte-americana sobre países latino-americanos.
No Brasil, a criminalização se consolidou com o Decreto-Lei nº 891, de 25 de novembro de 1938, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. Foi nesse contexto que a maconha passou a ser tratada como “entorpecente perigoso”, sendo equiparada ao ópio e à cocaína, e seu uso criminalizado. Essa decisão foi tomada com base em valores morais e racistas, não em evidências científicas.
O modelo de criminalização ataca os usuários, e não os problemas estruturais. Como analisar a política de drogas sem considerar a raça? Somos o segundo país com maior população negra do mundo e, ao mesmo tempo, um dos que mais encarceram. Os dados revelam o abismo: entre 2006 e 2021, enquanto a população carcerária aumentou 204%, o número de presos por tráfico de drogas cresceu 462%. Jovens negros são alvos preferenciais da repressão policial.
Ao mesmo tempo, substâncias legalizadas como o álcool causam muito mais mortes. Em 2019, o álcool foi responsável por 2,6 milhões de mortes no mundo, sendo 91,9 mil no Brasil — segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ainda segundo a Fiocruz, 12 pessoas morrem por hora no Brasil devido ao uso abusivo de álcool. E o cigarro? Nem precisamos entrar nos números agora.
Apesar do mito da cordialidade e da democracia racial, o racismo estrutural segue como alicerce das políticas públicas — especialmente na área penal. O ciclo se repete: navio negreiro, senzala, favela, cela. A política antidrogas no Brasil criminaliza a pobreza e perpetua a seletividade penal. A realidade é que a cor da pele e o CEP ainda determinam a forma como a justiça trata um suspeito. Um jovem branco da classe média alta, flagrado com entorpecentes, provavelmente será tratado como usuário e liberado. Já um jovem negro, morador da periferia, terá o mesmo ato enquadrado como tráfico.
A tragédia do racismo no Brasil se renova todos os dias. Crianças, jovens, adultos e idosos negros continuam sendo marginalizados e mortos em nome de uma política fracassada. A onda reacionária e anticientífica que domina o país reforça o estigma, destrói culturas inteiras e impede o avanço de políticas mais humanas.
Diante disso, é urgente repensar as leis e garantir aos usuários — sejam eles religiosos, recreativos ou terapêuticos — o direito ao cultivo e uso da cannabis. Uma democracia plena só existirá quando o uso da maconha for descriminalizado, regulado e respeitado como questão de saúde pública, liberdade individual e reparação histórica. A maconha precisa seguir seu curso: de plantio livre, consumo consciente e proteção jurídica. É uma questão de justiça, ciência e humanidade.