
Abrigo Nuclear, um dos filmes mais curiosos e ousados do cinema brasileiro, é uma ficção científica pós-apocalíptica filmada no litoral da Bahia entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980. Enquanto Hollywood dominava o gênero com naves espaciais e efeitos especiais grandiosos, o diretor baiano Roberto Pires decidiu criar uma distopia à brasileira, marcada pelo medo da radiação nuclear e pela sensação de viver em um mundo constantemente vigiado.
A história se passa em um futuro indefinido, no qual a superfície terrestre se tornou inabitável devido aos altos níveis de radiação, e o que restou da humanidade vive, há gerações, em um abrigo subterrâneo. Nesse ambiente ultracontrolado, os personagens sobrevivem sob regras rígidas, que sufocam qualquer traço de subjetividade. O tom é sombrio, e a falta de liberdade pesa tanto quanto a ameaça radioativa.
Sem acesso à superfície, os habitantes desconhecem o céu, o sol, o mar e qualquer outro elemento natural. Nem mesmo sabem sobre o passado da humanidade. São ensinados que sempre viveram em abrigos subterrâneos e que a superfície sempre foi perigosa. Toda a energia necessária ao funcionamento do abrigo é gerada em uma usina nuclear subterrânea, cujo lixo radioativo é levado à superfície por uma pessoa equipada com traje especial.

No entanto, um grupo passa a acreditar que, em algum momento, a superfície já foi segura e que poderá voltar a ser habitável, desde que a energia nuclear seja substituída por uma fonte limpa e sustentável, como a solar. Essa ideia, porém, desagrada a comandante Avo, autoridade máxima do abrigo, interpretada por Conceição Senna, que persegue o grupo rebelde e tenta impedir que eles descubram a verdadeira história da humanidade.

Roberto Pires: Pioneiro e inventor do cinema baiano
O diretor de Abrigo Nuclear, Roberto Pires, é um dos nomes mais importantes da história do cinema baiano. Dirigiu o primeiro longa-metragem feito na Bahia, Redenção (1959), marco inicial do chamado Ciclo Baiano de Cinema, que teve grande influência sobre o Cinema Novo. Esse movimento revelou figuras centrais do cinema brasileiro, como Antônio Pitanga, Helena Ignez (que estreou em longas com A Grande Feira, segundo filme de Pires), Orlando Senna (que começou como assistente de direção), Glauber Rocha (cujo primeiro longa foi produzido por Pires), Othon Bastos, Oscar Santana, Geraldo Del Rey, Rex Schindler, entre outros.
Com a ajuda de Oscar Santana, Pires chegou a desenvolver sua própria lente Cinemascope, chamada IgluScope, usada em Redenção. Juntos, também criaram um sistema de captação de som em fita magnética. Mesmo com poucos recursos, inventavam equipamentos para viabilizar seus filmes. Como escreveu Glauber Rocha no livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963): “Se o cinema baiano não existisse, Roberto Pires o teria inventado.”
Apaixonado por cinema policial, Pires abordou o gênero em vários filmes. Mesmo em A Grande Feira (1961), que não é um policial, há elementos criminais. Em Tocaia no Asfalto (1962), ele mergulha no noir baiano com excelência. Ainda dirigiu Crime no Sacopã (1963, hoje perdido) e A Máscara da Traição (1969). Na década de 1970, voltou-se para os riscos da energia nuclear, tema de Abrigo Nuclear (1981) e também de seu último longa, Césio 137 – O Pesadelo de Goiânia (1990), baseado no acidente radioativo ocorrido em 1987.
Além de dirigir, Pires atuou em diversas funções técnicas e criativas, inclusive em obras de outros cineastas. Foi montador, ator, diretor de fotografia (dividiu a função em A Idade da Terra, de 1980), roteirista, produtor, cenógrafo, entre outros. Cinema era sua grande paixão, e atuar em qualquer etapa da produção o realizava profundamente.

Bastidores de Abrigo Nuclear
A escassez de recursos marcou toda a produção de Abrigo Nuclear. Lançado em 1981, o filme contou com apoio de familiares e amigos, além de muita criatividade para criar cenários, figurinos e até um carro futurista. Os filhos de Pires, por exemplo, compuseram parte da trilha sonora.
A produção começou sem orçamento completo. Pires filmou as cenas mais simples e baratas com recursos próprios e de Oscar Santana, por meio da produtora Sani Filmes. Com esse material, buscou financiamento para concluir o projeto. A Embrafilme resistiu em investir, já que o filme denunciava os riscos da energia nuclear — tema sensível na época, pois o Brasil havia recém-assinado um acordo com a Alemanha para construir 11 usinas nucleares (das quais só Angra I, II e III saíram do papel).
A Embrafilme acabou liberando verba, mas insuficiente. Para finalizar o longa, Roberto Pires vendeu a casa da família, que passou a viver de aluguel. Por conta das dificuldades, as gravações enfrentaram diversas pausas, e o filme levou cerca de três anos para ser concluído — a produção começou em 1978, com uma pausa de quase dois anos.
O elenco era, em sua maioria, formado por atores não profissionais, com exceções como Norma Bengell e Conceição Senna. Amigos e filhos de Pires interpretaram diversos personagens, e o próprio diretor assumiu o papel principal: Lat, nome em homenagem ao cientista César Lattes, com quem Pires chegou a planejar documentários que nunca se concretizaram. Ambos compartilhavam a crítica às usinas nucleares.
Pires não apenas dirigiu e atuou, como também co-produziu, escreveu o roteiro (ao lado de Orlando Senna), montou o filme, dividiu a direção de fotografia, criou a direção de arte e até assinou parte do figurino. Foi um verdadeiro artesão, envolvido em todas as etapas da produção para tornar o projeto realidade.

A distopia brasileira
Um dos aspectos mais marcantes de Abrigo Nuclear é como o filme dialoga com o Brasil da época — ainda sob o controle da ditadura militar. No enredo, os moradores do abrigo são proibidos de conhecer o passado e não podem questionar a autoridade. Logo no início do filme, ouve-se no sistema de som: “Atenda à sua programação individual e obedeça ao comando.” A população é mantida na ignorância, sem acesso a livros ou conhecimento histórico. Tudo que sabem vem do que o governo permite. É uma espécie de “mito da caverna de Platão” encarnado em um regime autoritário.
Quem desafia esse sistema é considerado subversivo e é “desativado” — eufemismo para execução. As pessoas vivem desumanizadas, sem laços familiares ou nomes comuns. Chamam-se Avo, Ro, Lix, Lat, como se fossem códigos. Os diálogos são frios, automáticos. Falta emoção. Os únicos que falam de forma mais humana são os rebeldes.
É impossível não traçar paralelos com o regime militar brasileiro, que censurava, reprimia e eliminava dissidentes. O abrigo retratado no filme funciona como uma metáfora direta para o autoritarismo vigente à época.

Bahia Sci-Fi
Em 2015, Petrus Pires, filho de Roberto Pires, lançou o documentário Bahia Sci-Fi, uma homenagem à obra do pai. Disponível no YouTube — assim como todos os filmes de Roberto Pires —, o documentário reúne depoimentos de atores e membros da equipe de Abrigo Nuclear, resgatando os bastidores do projeto.
Bahia Sci-Fi transmite o espírito coletivo e a paixão que tornaram possível a realização de Abrigo Nuclear, além de reforçar o legado de inventividade e coragem de Roberto Pires — um verdadeiro visionário que sonhou com ficção científica em pleno sertão baiano.