
Desde o começo da história da humanidade, o sujeito homem, especialmente a partir do desenvolvimento e organização das primeiras sociedades, carrega um espírito equivocado de autopromoção da defesa pessoal. Ao longo dos anos, o animal intelectual, esse ser terrivelmente divino e também animalesco, carregado de boas e más vontades, através de um discurso sem fundamento lógico, alimenta uma narrativa de defesa pessoal que, de modo equivocado, desumaniza a própria vida. A ideia de que o uso da força e das armas representa o melhor caminho para garantir a ordem e a segurança é, em si, um retrato do descompromisso intelectual, moral, ético e até religioso. Dito isso, torna-se necessário traçar uma cronologia histórica dessa pseudo-narrativa de segurança que, há séculos, insiste em se reinventar sob novas roupagens, desconsiderando os inúmeros estudos em torno da política de armas.
Quando olhamos para as primeiras civilizações, é possível perceber que o armamento, muito utilizado por esses povos, esteve ligado à preservação do território, da propriedade, da honra e, claro, da autoridade. A figura do guerreiro era sinônimo de ordem, e a violência era vista como um instrumento legítimo da manutenção da estabilidade social. Contudo, essas mesmas armas nunca asseguraram efetivamente um estado harmonioso de segurança social.
Com o advento do cristianismo ao redor do mundo, especialmente quando esse movimento religioso se inseriu nas monarquias, o uso da força foi revestido de legitimidade religiosa. As chamadas guerras santas, a exemplo direto das cruzadas, foram justificadas em nome de uma fé morta e de uma proteção divina que nunca chega. Hoje, dentro do cenário atual, a religiosidade cristã é instrumento de manipulação, controle e normalização da violência. A espada, outrora usada para decapitar, se transforma em uma fé instrumentalizada. Há, e não tenhamos dúvida alguma em relação a isso, uma descontextualização dos ensinos deixados pelo principal personagem bíblico, Jesus Cristo de Nazaré, no que concerne a seus mais belos ensinos acerca do amor, respeito e empatia ao próximo e a si mesmo. Nesse contexto, diabolizado pelo sujeito homem que presta culto ao ego animalesco, Cristo se perde em meio à violência do verbo, da palavra destituída de verdade e alicerçada no ódio.

Durante os séculos XVIII e XIX, o mundo passou por uma enorme transição no campo moral, expondo um novo discurso: o direito de possuir armas como uma garantia de liberdade individual. Todavia, não quero parecer avesso à liberdade individual de cada indivíduo, mas mostra-se importante expor dados que demonstram e comprovam uma irracionalidade no discurso pró-armamentista. Nos Estados Unidos, por exemplo, o uso de armas de fogo pela população civil é parte de uma construção cultural perigosa que escancara um efeito colateral desastroso. Essa noção se expandiu pelo Ocidente, mesclando-se a ideais liberais e à defesa da propriedade privada, o que, no fundo, é também uma forma de manter o controle social e garantir a segurança dos mais privilegiados.
A partir de 1980, a violência armada no Brasil começou a crescer de forma contínua, culminando em 2017 com mais de 44 mil mortes causadas por armas de fogo. São vidas ceifadas pelo descaso das autoridades competentes e em consequência direta de uma cultura de violência que dilacera, especialmente, jovens negros e periféricos. Apesar de uma ligeira redução nos anos seguintes, o cenário permanece preocupante, com 33 mil homicídios registrados em 2022. Em 1980, 43,9% dos homicídios estavam associados ao uso de armas de fogo, proporção que aumentou progressivamente até atingir 72,4% em 2017, mantendo-se acima de 70% nos anos subsequentes. Esses números alarmantes refletem a permanência de uma rede complexa de fatores sociais, econômicos e culturais que perpetuam o ciclo de violência armada no país (Fórum de Segurança Pública Brasileira – Atlas da Violência).
A trivialidade da vida, sobretudo quando estamos falando de pessoas carentes, da camada mais pobre do país, promovida por políticos descompromissados com o bem-estar social, gera instabilidade popular que acarreta transtornos diversos, especialmente no âmbito psicológico das famílias vítimas de ações arbitrárias e desumanas. Há um escancarado descompromisso do poder político com a dignidade humana, tornando cada vez mais evidentes os verdadeiros motivos que impulsionam as ações das corporações de segurança pública: a perpetuação do poder. A partir disso, fica notório que o homem armado passou a ser uma espécie de herói sem capa, um protetor dos bens materiais e da família.
O Brasil, terra marcada pelo mau uso do poder político, torna-se reflexo e exemplo prático de uma mentalidade que, desde o período da ditadura militar, se manifesta no imaginário popular. A ideia de que a “ordem se dá pela força” é um discurso perigoso e que acende um alerta. Armar o povo não é sinônimo de liberdade. Ao contrário, essa urgente necessidade de fornecer à população o acesso a armas de fogo, sejam de pequeno ou grosso calibre, é fazê-la cúmplice da mesma violência que a oprime. O que se vê, então, é um mito de autodefesa e uma espécie de “populismo da bala”.
A recente megaoperação no Rio de Janeiro é uma representação trágica desse equívoco histórico. Foram apreendidos, com base no levantamento feito pelo Sinesp (Sistema Nacional de Segurança Pública), em apenas um dia, mais de 100 fuzis. A ação, vista como desastrosa por críticos, jornalistas e ativistas dos direitos humanos, resultou também em um alto número de mortos, superando a chacina do Carandiru, incluindo agentes de segurança. Mortes e mais mortes. Resultado? Nada de novo no fronte! Mais mortes e mais caos nas periferias. Ninguém sensato está defendendo bandido que toca o terror na favela com fuzil na mão. O que se diz aqui é acerca do uso letal do poder estatal e de uma falaciosa narrativa pró-liberação de armas. O que houve no Rio não foi combate ao crime organizado, foi um verdadeiro espetáculo, um show de horrores com direito a aplausos de uma plateia equivocada.
Frente ao crescimento da extrema-direita no Brasil e no mundo, a defesa da segurança pública tem sido, em sua maior parte, atribuída ao acirramento da repressão policial, ao encarceramento em massa, voltado principalmente à juventude negra e periférica, e à necessidade, como já dito antes, de construir uma população armada.
A síntese desse pensamento se dá mediante a produção de um discurso armamentista que, cada vez mais, ganha adesão social. Entretanto, é sabido que as armas não geram segurança e, embora a ideia de uma política armamentista pareça apenas uma palavra solta, a defesa das armas carrega um simbolismo ligado ao poder. Desse modo, coloco aqui o nome de Michel Foucault, importante filósofo e crítico social, que nos avisa, por meio de seus muitos textos e ensaios, do perigo de certas narrativas e daquilo que ele chamou de “objeto de desejo”. Tomando como base o pensamento foucaultiano, a política é, nesse sentido, um dos lugares onde o discurso revela seu desejo: a busca pelo poder.
Para se compreender a fundo esse fracasso que é a narrativa rasa do discurso armamentista, é importante também resgatarmos alguns decretos feitos durante o governo de Jair Messias Bolsonaro, figura venerada no meio político conservador e entre fundamentalistas religiosos. Dentre as muitas armas e munições apreendidas pela operação no Rio de Janeiro, estão os modelos de fuzis 5.56 e 7.62, que foram, de modo diabólico, autorizados para compra por civis pela lei de armamento do governo de Bolsonaro, ou seja, armas desviadas por CACs para o crime organizado. A medida só fortaleceu o crime organizado como um todo, deixando criminosos bem equipados belicamente. Como se percebe, o poder bélico de certas organizações criminosas no país parece ser até mais destrutivo que o da própria força pública de segurança. Com tudo, no imaginário brasileiro persiste a vã ideia de que “bandido bom é bandido morto”; por isso, deve-se armar o chamado “cidadão de bem”.
A pauta armamentista, embora presente no país desde o início do século, alcançou maior ímpeto desde a candidatura de Jair Bolsonaro (2018-2022), cujo principal slogan de campanha era a defesa geral e irrestrita das armas. O discurso, utilizado pelo ex-presidente e seus apoiadores, fruto de uma paixão fanática pela figura do Tio Sam, sempre foi voltado à segurança pública e à utilização de armas de fogo para a proteção do “cidadão de bem” e da “família tradicional brasileira”, em detrimento daqueles considerados “infratores da lei e da ordem”. Como já dito anteriormente, ao compreendermos o poder da palavra sob a perspectiva foucaultiana, o uso de certas palavras reforça no imaginário popular uma pseudo visão de “superioridade”. Como expressão ideológica reacionária, seu uso gera certas consequências que afetam diretamente o convívio social, afetando as relações dentro do Estado Democrático de Direito. Causa-se, dentre tantas desordens, um distanciamento humano no campo da empatia e do respeito.
O Congresso Nacional, também conhecido como casa do povo, é um recinto, hoje, repleto de figuras reacionárias e apaixonadas pela política da bala. Não à toa, a chamada “bancada da bala” é um projeto político colocado em pauta e defendido por muitos, desde homens e mulheres, pastores e policiais, professores e médicos, uma verdadeira união humana em prol de uma política assassina e irracional. Essa política reproduz o que Maquiavel chamaria de uso “instrumental da violência”. Nessa visão maquiavélica, o Estado tenta se impor por meio da força bruta e arbitrária, criando uma falsa ilusão de segurança. Em suma, esse discurso armamentista é maquiavélico em seu método, embora, é claro, não na profundidade. Todavia, o problema não é Maquiavel e sua obra O Príncipe: ele não prega o caos, jamais defendeu uma violência irracional e soberba. O problema, nesse caso, é a má leitura que se faz de sua obra e de seu pensamento.
Quando se traça um mapa do crime, inúmeros são os fatores que contribuem para que uma pessoa venha a cometer infrações graves. Dentre tantos fatores, podemos destacar os altos índices de evasão escolar, ou seja, a não conclusão do ensino de base e médio. Sem base curricular educacional e inserido em um cenário social de imensa dificuldade, o jovem busca no mundo do crime sua salvação e sua redenção. Romantiza-se as ações criminosas e o porte da arma de fogo. Se seguirmos ignorando os fatores que contribuem para a criminalidade, a tendência é a retroalimentação desse ciclo.
A crise é grave. Apesar disso, o negacionismo científico está cada vez mais presente nas narrativas da direita brasileira, se alastrando cada vez mais no meio policial, ou melhor, junto às forças de segurança pública. A descrença, ou a desconsideração intencional, na multicausalidade da criminalidade nos revela, igualmente, a necropolítica, conceito apresentado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, presente nas ações estatais. Para Mbembe, algumas mortes, dentro desse Estado violento, se tornam aceitáveis e até normais, o que justificaria ações policiais violentas para a manutenção da lei e da ordem. Percebemos isso quando ligamos o noticiário e nos deparamos, cotidianamente, com um número grande de jovens negros mortos. A favela vira alvo. O corpo preto, independente de sua faixa etária e gênero, vira alvo.
Ainda que sob a justificativa de segurança e “proteção da vida”, as armas de fogo são o principal meio a partir do qual se mata no Brasil, esteja ela na mão do “cidadão de bem” ou não. Em 2022, para se ter uma ideia, o número de mortes violentas por armas de fogo no país foi equivalente a 76,5%. A maioria foi causada em intervenções policiais ou homicídios dolosos, mas, nos casos em que o resultado foi a morte – latrocínio ou lesão corporal seguida de morte –, a utilização de armas de fogo também foi considerável. Homens negros, sendo estes os alvos da necropolítica, precisamente de 18 a 24 anos, seguem sendo as principais vítimas, independentemente de qual seja o tipo penal (FBSP, 2023). Além disso, a facilitação do acesso a armas de fogo e munições em contextos originalmente violentos, como em residências onde há violência doméstica, agrava o quadro, podendo culminar em feminicídio. De acordo com uma pesquisa produzida pelo Instituto Sou da Paz (2024), uma em cada duas mulheres assassinadas é vitimada por arma de fogo. Mulheres negras são as principais vítimas.
Precisamos, mais do que nunca, nos desprendermos dessa falaciosa narrativa que prega o armamento da população civil. É um discurso, como destrinchado neste texto, perigoso e nocivo para o país. Populações inteiras são vitimadas pelo discurso pró-armas. É preciso, dada a gravidade da situação em que nos encontramos, tornar as regras de acesso a armas de fogo mais rígidas. Legislações menos restritivas ao acesso aos armamentos aumentam a aquisição e, consequentemente, o seu uso. O Brasil, sob governo Bolsonaro, foi exemplo do que não fazer. Uma sociedade alicerçada em uma cultura patriarcal e exclusivamente machista, não sabendo lidar com as próprias emoções, não pode lidar com a facilidade no manuseio de armas de fogo. Contudo, para além de mudanças no campo legislativo, precisamos entender os motivos que levam as pessoas a aderirem a um projeto político de matança. O medo da vitimização e a nossa construção de masculinidade estão entre estas razões, tal como também a chamada “guerra santa” entre Deus e a figura caricata do Diabo.
A questão das armas, assim como tantas outras demandas questionáveis, não estabelece uma ordem social. Essa concepção, encarada como equivocada, de que a segurança pública se resolve mediante a militarização da sociedade, é um problema real e de gravidade significativamente letal. O movimento que defende o armamento civil produz, como consequência, um cenário de conflito entre grupos privilegiados e os chamados grupos minoritários. Há, de forma profunda e estrutural, uma relação entre a liberação de armas e a criminalização da população negra. Nesse ponto, Angela Davis, importante ativista e filósofa norte-americana, reafirma, em muitos de seus textos, essa problemática como um subproduto histórico da escravidão.
Nesse cenário, torna-se urgente a desconstrução dessa fábula armamentista que tanto alimenta a violência urbana. As pessoas precisam ter acesso a informação de qualidade, cientificamente assegurada e democraticamente disseminada. A educação, sendo esta uma ferramenta de transformação social e de libertação, deve se somar às ações que buscam solucionar a questão da violência, contribuindo para a construção de uma nova cultura, de um novo olhar pautado na paz e no respeito à vida.
Conclui-se, então, que a difusão de armas de fogo na sociedade gera efeitos horrendos, como o aumento de ações criminosas e a facilidade para o crime organizado continuar ocupando cada vez mais espaços e territórios. O Estado precisa, verdadeiramente, empenhar-se no combate à desinformação, fortalecendo estudos científicos que apresentam soluções reais para conflitos que, apesar dos anos, persistem em assolar a sociedade brasileira. As famílias brasileiras precisam, de uma vez por todas, compreender que política de segurança pública se constrói por meio de estudos sérios, reais e eficazes. Armas, quando deliberadamente liberadas para a população, aumentam a morte e o medo, ao passo que a educação, o acesso a oportunidades e o fortalecimento de políticas públicas de prevenção constroem segurança genuína.















