
Numa tarde ensolarada do ano de 2020, estávamos eu e Gabriel em casa, claro. Enquanto goles de cerveja desciam pela garganta, eu fazia experiências de corte em seus cabelos e nós escutávamos as músicas da vida um do outro, tentando encontrar sentido no som ambientado na kitnet que morava e trazendo para o relacionamento o quanto aquilo representava a nossa trajetória enquanto indivíduos, dando significância aos momentos e criando recordações.
Músicas brasileiras faziam grande parte do repertório. E, talvez por eu estar falando de onde venho, mas sinto que dentro delas há uma espécie de sangue quente, que se doa como se o reservatório fosse infinito, faz inclusive parecer muito fácil; uma sede pela cadência e pelo alto astral que não existe como, já tentaram, mas só o Brasil é capaz de produzir.
Naquele dia, depois de conhecer algumas canções interpretadas por Leila Pinheiro, foi a vez de uma voz popular aguda, nasalada e com uma tristeza guardada, quase como quem fala engolindo o choro. Ali foi amor à primeira vista, eu me apaixonava por Evinha.
A primeira música que ouvia enquanto brilhavam os meus olhos era “Que Bandeira”, e mais especificamente a passagem no final do refrão para a segunda estrofe fez um rebuliço. “De maneira aqui pra brigar… Eu não voltei, e eu não voltei porque agora eu sei”. Uma necessidade de conversa astuta, muito irreverente. Muito expressiva, muito cativante, muito Evinha. Uma fragilidade forte ou uma fortaleza frágil. Sinto que se trata de um som ancestral, uma voz marcada pelo tempo, pela necessidade de gritar suas vontades, pois ninguém parecia querer ouvir.
Nos dias seguintes, fui conferir o resto de sua discografia pequena, mas cheia de boas surpresas. “Virou Lágrimas” apareceu entre as minhas músicas mais escutadas daquele ano. Lembro de ouví-la pela primeira vez em um dia de sol enquanto regava as plantas da varanda. Quem acabou sendo regado foi o meu rosto. Desabei em choro. Tudo literalmente virou lágrimas (rsrs). Mais especificamente o trecho logo após o refrão e o início da estrofe “Vou tentar deixar pra lá, tudo nessa vida é passagem”, muitas foram as vezes que coloquei a música na espera de escutar apenas essa parte. É sempre por causa de um trecho, comigo pelo menos. Segundos que valem tudo.

Evinha seguiu percorrendo os passos que eu dei. “Esperar pra ver” foi trilha sonora de rolês apoteóticos, especiais ou simplesmente uma cerveja a dois e pés dançantes. Todas as músicas dos álbuns “Eva” e “Cartão Postal” têm seu momento especial.
Is it flying or falling?
Estamos em 2025, cinco anos se passaram desde que eu descobri Evinha, de forma lúdica, sentimental, totalmente adequada. Música é para ser apresentada, ser surpreendida. Música precisa de um momento, da existência gratuita e espontânea, de modo que contextualize as memórias.
Inclusive, nunca entendi o hábito que algumas pessoas têm de caçar canções, algumas parecem usar até rede de pesca. Grande equívoco, o movimento é o oposto, a música é quem tem de chegar. Caso contrário, sua relação com a canção parte de um encontro forçado, em que você quis, ela não. Que história maçante, eu não leria esse livro.
Eu vejo assim. E tudo bem se o encontro com a canção não é importante para você tanto quanto todos os outros momentos. Algumas pessoas não se importam com a forma que suas relações começam, desde que passado algum tempo esteja tudo em seu devido lugar. Eu sim.
Sobre hoje: No começo deste ano, o inesperado aconteceu. O rapper BK lançou uma música usando a magnética e subestimada “Esperar pra Ver” de sample. Bastaram alguns dias para que um trecho específico ganhasse espaço no TikTok em vídeos, dublagens e transições.
De uma hora para outra, todos estavam escutando Evinha, elogiando, compartilhando, virando fãs. Porque, sim, é impossível sair indiferente.
Eu assistia àquilo com um misto de alegria e estranhamento. A voz que me soou como um recado íntimo, agora atravessava gerações. Mas entendi que ela não chegava para os outros como chegou para mim.
Ela não entrou pela porta da tarde ensolarada, pela cerveja no copo, pelo corte de cabelo improvisado na kitnet, pela conversa que a melodia parecia provocar. Ela veio pela tela, pelo algoritmo, pela escolha invisível de quem calcula o som que faz grudar na cabeça do maior número de pessoas, no menor espaço de tempo.
Quando citei sobre o trecho aguardado da música, era sobre espera, não sobre tê-lo de mão beijada. Qual é a graça?
E esta não é uma crítica à descoberta em si. É apenas perceber que existe uma diferença imensa entre tropeçar numa canção porque a vida levou você até ela, e receber a canção pronta, recortada, com os segundos que “funcionam” melhor. Um encontro acidental pode ser um romance, um encontro programado é um contrato. Freio de mão que anda preso é vida calculada. Quer emoção? Pé na tábua, se acidente (este comentário é simbólico, tenha cuidado ao dirigir).
O que aconteceu com o encantamento? Se até o belo é embalado? A arte se instala porque chega no instante certo, no lugar certo, no corpo certo. Atravessa porque encontra o momento que deixa de ser “eu” para ser “a gente”, algo que é inerente à vida e não pode se perder. Não existe substituto para o arrepio de quando a canção se mistura ao cheiro de um quarto, à luz incandescente do sol das cinco. Não há receita para o encantamento.
A música pulsa nas raízes e quase nada na quantidade de vezes que é tocada, inclusive, eu diria até que quanto menos melhor. O apego nasce quando um som se prende à textura de um dia, à cor de um vestido, ao silêncio entre duas frases. Quando ela deixa de ser música e passa a ser lembrança.
Evinha cresceu no Spotify, fiquei feliz. Os fins justificam os meios. Paraquedas que entregam encomendas esmagando seu destinatário. Que tragédia mais atual.