
O tempo é senhor de todas as coisas. Sua passagem é inevitável — para gregos e troianos, nobres e plebeus, tolos e geniais. “O tempo não para, nem vai esperar.”
Nos últimos anos, tenho sentido sua presença com mais intensidade. Não apenas no espelho, ao notar os fios de cabelo mais ralos ou as marcas mais profundas no rosto, sinais que assustam mesmo quem ainda desfruta dos últimos anos da juventude, mas sobretudo na despedida silenciosa de tantos ídolos.
Tenho me sentido só. Uma solidão que nasce da ausência de referências vivas. Posso listar páginas e páginas de nomes que foram aurora na arte, vozes que me guiavam — e que agora ecoam apenas na memória. Também por isso, tenho permanecido mais calado: um silêncio que, por vezes, angustia; noutras, revela.

Na última semana, esse vazio se ampliou ao ler a manchete de um jornal: nosso amado Milton Nascimento recebeu o diagnóstico de demência por corpos de Lewy. Aos poucos, ele se distancia de sua mente fecunda para viver em um mundo paralelo — talvez só seu. O depoimento comovente de seu filho, estampado na edição da Revista Piauí neste início de outubro, é realmente de chorar. Um canto de ninar que anuncia: encontros e despedidas são dois lados de uma mesma viagem.
Ao compartilhar a dor dos últimos meses, Augusto Kesrouani Nascimento resumiu, em linhas dolentes, a severidade da vida na nova rotina do pai: um dia a dia cercado de amparo, mas repleto de incertezas e desafios inéditos. Seu relato é categórico num tempo em que a humanidade parece escorrer pelas mãos. Como desabafo, alerta ou gesto de compaixão ao Brasil — ou ao mundo —, o filho de Bituca nos lembra: somos ambíguos, fortes e frágeis, pequenos e gigantes, divinos e mortais.
Milton Nascimento é, sem qualquer dúvida, o cantor que mais escuto. Um artista que se tornou meu ídolo em um período muito inquieto da vida (e nem tão distante assim). Em uma espécie de claustro, me agarrei àquela voz que Elis Regina, com razão, chamou de “voz de Deus”, e fiz dela a trilha dos meus dias. Era uma travessia, e ele compreendia aquela eterna noite em que eu vivia.
Amo Milton como compositor, mas preciso frisar seu lado intérprete. Seu cantar, que parece percorrer os cumes mineiros, deu vida a tantas canções — e sentido a tantos silêncios.
Um álbum ainda pouco falado de sua carreira, e que merece ser relembrado nestas linhas, é o “Crooner”, lançado em 1999 pela WEA Music. Um primor de repertório, cheio de nuances rítmicas e emotivas. Peço licença para falar mais sobre ele.
Reunindo clássicos da música brasileira com faixas inéditas, nosso Bituca mostra o porquê de ser tão reverenciado. É malemolente ao interpretar “Aqueles Olhos Verdes”, versão de João de Barro para o bolero “Aquellos Ojos Verdes”, de Nilo Menéndez e Adolfo Utrera. É irônico e sarcástico em “Only You”, de Buck Ram e Ande Rand. O baile fica completo com as dançantes “Frenesi”, de Alberto Domínguez, e “Mais Que Nada”, de Jorge Ben Jor.
Com “Rosa Maria” (Aníbal Silva e Eden Silva), “Castigo” (Dolores Duran), “Lágrima Flor” (Billy Blanco) e “Lamento no Morro” (Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes), ele celebra a essência da música popular brasileira em sua melhor forma. Já as (então) inéditas “Certas Coisas” (Lulu Santos e Nelson Motta) e “Resposta” (Samuel Rosa e Nando Reis) apontam para o futuro bonito que ainda temos pela frente.
O disco é magnífico e precisa ser revisitado por quem deseja entender que Bituca é um artista completo — e sempre será. Criou sua própria identidade, mas soube reverenciar os que asfaltaram essa estrada antes dele, e exaltar os que ainda estão por surgir. Ao emprestar sua maravilhosa voz para interpretar o Brasil, ele mostra que já cumpriu sua missão — com beleza, coragem e verdade.
Ditando estas simples palavras e escutando “Coração de Estudante”, me despeço. Ainda em silêncio, mas com lágrimas, digo: o tempo passa, mas ídolos são sonhos. E sonhos não envelhecem.