
“Sua história parece com a daquele cara que foi picado por uma aranha e virou herói”.
Desde cedo, somos condicionados a olhar para fora: nossos heróis, quase sempre, vêm embalados pelas grandes indústrias culturais de outros países. Construir um protagonista notadamente brasileiro já é um desafio; quando o recorte é regional, essa identificação se torna ainda mais rara.
Dito isso, a nova produção brasileira dirigida por Halder Gomes faz um misto entre comédia e ação e nos transporta para um futuro distópico onde o riso se mistura à crítica social. A trama busca retratar um agente secreto genuinamente cearense, da Terra da Luz.

Em “C.I.C.: Central de Inteligência Cearense” (2025), acompanhamos o Agente Karkará, codinome do espião Wanderley (Edmilson Filho), membro de uma fictícia agência secreta cearense. Sua missão: recuperar a fórmula de um projeto ultrassecreto, roubado em uma operação que envolve Brasil, Paraguai e Argentina. Junto à agente Micaela (Alana Ferri) e ao agente Romerito (Gustavo Falcão), “Ley” parte rumo à tríplice fronteira em busca de desvendar o enigma.
Halder Gomes, reconhecido por sucessos como “Cine Holliúdy” (2012) e “O Shaolin do Sertão” (2016), já se consolidou como um dos grandes nomes do audiovisual cearense. Uma das marcas mais consistentes de seu trabalho, e, talvez, uma das mais bonitas, é a presença constante de rostos do teatro local, mesclando atores consagrados e talentos emergentes.
Haroldo Guimarães, Igor Jansen e, claro, o próprio Edmilson Filho são exemplos de artistas que ganharam projeção nacional a partir desses espaços. Muitos deles já comentaram, em entrevistas e bastidores, o peso que Halder teve em suas trajetórias, não apenas como diretor, mas como mestre e incentivador.
Estar familiarizado com o universo teatral cearense torna cada minuto de “C.I.C”. quase como uma caça aos artistas. Cada plano traz uma expectativa de saber qual será o próximo rosto conhecido que aparecerá, sejam como personagens em primeiro plano, sejam como figurantes. E é assim que o elenco de “C.I.C.”, recheado de cearensidade por nomes como Carri Costa, Karla Karenina, Denis Lacerda, Bolachinha, Titela, Mateus Franklin, Lucas Alexandre, Falcão, Victor Alen e tantos outros, reforça esse compromisso com a cena local.
Para além do elenco, vale destacar como o filme ganha charme com a presença de cenários familiares. Ver os céus, as ruas e os prédios de Fortaleza retratados na tela é um presente para o público, que, no dia a dia, frequenta esses espaços. Em “C.I.C.”, vemos a Universidade Federal do Ceará, a Catedral Metropolitana, as praias do litoral e o centro da cidade como parte viva e colorida da fotografia, criando uma sensação de reconhecimento.
Essa proximidade com o ambiente cearense não é o único recurso para atrair o público. A comédia na fala, nos trejeitos e nas situações vividas pelos personagens é um elemento central da narrativa. Minha relação com o gênero, porém, é repleta de dilemas, especialmente quanto ao uso exagerado. Sei que, em muitos casos, o humor popular encontra força justamente na repetição e na caricatura, mas há momentos, em tela, em que o excesso se aproxima do desconforto.
No entanto, comparando a “C.I.C.” com outras produções de Halder, como Bem-vinda a Quixeramobim (2022), nota-se que ali a construção narrativa em torno das gírias e trejeitos cearenses é mais equilibrada. As expressões típicas do dialeto local surgem de forma orgânica, sem se tornarem um recurso cansativo, mas, ainda assim, fazem reviver aquele mesmo sentimento, mesmo com o esforço para ser evitado.
Os primeiros quarenta minutos de “C.I.C.” conseguem manter o interesse, em parte pelo uso dos efeitos especiais, recurso pouco explorado nas produções anteriores de Halder e que aqui surge como novidade. Mas essa mesma aposta visual, em alguns momentos, mais confunde do que acrescenta. Um exemplo marcante surge logo no início, quando são apresentados os elementos biônicos do agente Karkará: o público reage com riso, mas a repetição da sequência braço-robótico-voa-e-fala acaba enfraquecendo o impacto inicial.
Outro aspecto é a participação de Valéria Vitoriano como Mazé, uma inteligência artificial que rende momentos carismáticos, apesar de que, hei de pontuar, funcionassem ainda melhor se fossem mais pontuais, permitindo repensar o estilo de comédia cearense.
Sua presença é concentrada sobretudo nos primeiros trinta minutos, quando busca aproximar o público por meio das gírias. A inserção desses elementos linguísticos, em grande parte, mantém sintonia com o contexto das cenas, evitando um uso gratuito ou excessivo do dialeto local. Na última hora de filme, no entanto, a personagem abandona sua forma projetada e passa a interagir diretamente com Karkará, o que, embora mantenha o tom humorístico, cria a sensação de um acompanhamento constante que nem sempre se acrescenta à história.
Ao fim, a sensação que fica é que “C.I.C.: Central de Inteligência Cearense” provoca reflexões sobre a construção do “herói local” e surpreende ao oferecer um desfecho que foge do clichê dos planos mirabolantes típicos dos blockbusters internacionais. Ao inserir na narrativa uma crítica à política da boa vizinhança e ao mesmo tempo um cuidado para com as questões ambientais, o filme acrescenta uma camada interessante, rompendo expectativas sobre o que poderia ser esse plano envolvendo Brasil, Paraguai e Argentina.
Ainda que “C.I.C.” não revolucione em termos narrativos, é sempre prazeroso ver produções cearenses ganhando espaço nas telas, celebrando nossa cultura, nossos sotaques e nosso jeito moleque.