
Uma das grandes vantagens de participar de Mostras e Festivais é a descoberta de novos filmes. Com um horário livre e nenhum texto pendente, por que não se aventurar em uma sessão apenas porque o pôster ou a sinopse chamaram a atenção? Nessas ocasiões, é comum encontrar produções irregulares de diretores inexperientes, mas também é possível topar com verdadeiras surpresas. Foi o que aconteceu com Cães, longa do uruguaio Gerardo Minutti Bonilla, que também assina o roteiro, na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
No filme, o verão chega e a família Saldaña assume uma nova tarefa para preencher o marasmo: cuidar da casa dos vizinhos, os Perna, enquanto eles viajam de férias. A residência luxuosa desperta a inveja não apenas dos Saldaña, mas de todo o bairro. Sem abrir mão das próprias vontades, eles decidem aproveitar a estadia como se fossem os verdadeiros donos do imóvel. Tudo parece perfeito, até que o cachorro dos Perna desaparece sob a supervisão dos Saldaña, detonando uma espiral de desconfiança e violência entre os dois grupos.
Consequentemente, um dos méritos mais evidentes do filme está na direção de arte, que estabelece de forma sutil e eficaz a diferença entre os universos das duas famílias. Não há juízo de valor, mas um olhar atento sobre o contexto social que leva os Saldaña a explorarem o espaço alheio. Pequenos detalhes, como o sol atravessando a janela e tornando o ambiente abafado, justificam, sem palavras, a fuga constante para o conforto da casa vizinha com ar-condicionado.

A busca por prazer começa como um capricho e se transforma em vício: a televisão maior, o cortador de grama que funciona, o conforto silencioso. A inocência dos Saldaña, unidos, bondosos, mas ingênuos, os faz acreditar que seus atos não terão consequências. O roteiro, atento a isso, acompanha o ponto de vista deles, expondo tanto sua humanidade quanto sua tolice.
Outro trunfo é a estrutura narrativa, que constrói uma tensão crescente, sempre com consequências palpáveis. O espectador se diverte tentando prever o que vai dar errado, mesmo sem imaginar o tamanho do desastre. O ritmo urbano e cotidiano, em que os conflitos se acumulam discretamente até explodirem no final do segundo ato, remete ao primeiro longa de Kleber Mendonça Filho, O Som ao Redor, que por sua vez dialoga com o cinema paranoico de John Carpenter. A rotina aparentemente inofensiva vai revelando fissuras até se tornar uma ameaça concreta e, quando o inevitável acontece, o impacto é maior do que o esperado.
Do ponto de vista narrativo, Cães é um filme impecável. Mas o que realmente o eleva é o trabalho do elenco e da câmera. Bonilla conduz uma mise-en-scène precisa, em que os atores se movem organicamente dentro dos espaços que a imagem explora com elegância. Mesmo em ambientes limitados, o movimento é fluido e íntimo, nos aproximando dos personagens, e, consequentemente, nos tornando mais vulneráveis quando a guerra entre as famílias se instala.
No fim, Cães é uma poderosa reflexão sobre paranoia, medo e os limites da convivência em comunidades falsas, sustentadas por aparências frágeis e prontas para o colapso. É um filme maduro, intenso e surpreendentemente bem resolvido em todas as áreas.
Filme visto na cobertura da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo












