E se a sua vida fosse narrada pelo Abujamra?

Texto de Lucas Paiva, Mestre em Comunicação e jornalista com experiência em metodologia de pesquisa
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“A vida não tem roteiro” / Foto: Divulgação/TV Cultura

Esse texto é uma fábula. Ele remete a um pesadelo, não sei, que tive um dia desses, em que estava em minha rotina laboral e, de repente, começava a ouvir o Abujamra narrando a minha vida. E lá estava ele, no close-up da televisão, camisa social e um suspensório, olhando fixamente para um espectador da minha própria vida que não eu, e falando:

“Coragem, coragem. Mude, mude, mas comece devagar…”

Eu olhava para cima pensando em que droga é essa que estava acontecendo, mas seguia minha rotina de digitador e leitor de planilhas. Pensei: “Meu Deus, não é possível, estou mesmo sendo narrado pelo Abujamra?! E agora, será que ele me escutou?” Não ouvi mais nada, talvez ele não tenha me escutado, fiquei triste e minha vida voltou a ser um programa vespertino com uma ou outra receita de culinária e fofocas de famosos que eu não conheço.

Terminei o expediente, arrumei minhas coisas para ir embora e enfrentar mais uma jornada de condução. Parado, com minha bolsa na altura do peito, respirei fundo e novamente ouvi aquela voz tenra, inquisidora:

“Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e não ter outra vista do que as janelas ao redor.”

Fiquei assustado. Olhei ao redor, não havia Abujamra, só havia outras pessoas iguais a mim de fisionomia cansada e sonhos avoantes, aguardando a condução. Pensei: “Novamente isso, novamente essa voz. E eles, será que eles também são narrados pelo Abujamra? Não é possível, que loucura.” Não falei com ninguém, afinal, não queria parecer um maluco pois, de louca, já basta a realidade.

Segui no ônibus, da janela, tudo igual do lado de fora. Acho que dormi um pouco no caminho, vai saber. Cheguei em casa, beijei a minha esposa e olhei meu pequeno já dormindo, cheguei tarde e o tempo que me restou gastei indo para casa; que vida. Não confessei a minha esposa esse momento narrativo, não achei que ela fosse compreender isso. 

Perto de dormir, já nos braços do lençol, alguém sussurra na minha cabeça:

“A vida não tem roteiro.”

Já não me assustei mais, aceitei o fato de que minha vida passaria a ser narrada pelo Abujamra e faria dela uma entrevista que valesse a pena. Se é para ter plateia, que ao menos haja alguma poesia no gesto de existir. Fechei os olhos, e ouvi minha esposa dizendo:

“Amor, que estranho. Eu acho que ouvi a voz da Clarisse Lispector narrando a minha vida.”

Amanhã recomeçamos.

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