
Há palavras que escorrem da nossa boca sem que o peso delas seja percebido. “Medo” é uma delas. Tão breve, tão simples, e no entanto densa como um oceano à noite. Ela também tem diferentes formas: em latim, “metus”, como se fosse um sussurro no escuro. Na mitologia grega, Fobos, filho de Ares e Afrodite, que cavalgava nos campos de batalha, espalhando o terror antes mesmo que uma lâmina tocasse algum pedaço de carne. Já para Heidegger, a essência humana reside no desconhecido e no temido. Mas para mim, sempre foi uma cartografia do impossível. Eu desenhava, em linhas trêmulas, os contornos do que eu achava que não podia enfrentar: o mar, a perda, o adeus.
Belchior canta sobre o medo em tempos sombrios. A música Pequeno Mapa do Tempo é um retrato concreto do medo durante a ditadura, uma confissão de angústia de quem via a ameaça se materializar em exílio, tortura e morte. Ele sabia que o terror não era só uma possibilidade, mas um ciclo que se repetia. Então, ele cantou sobre abrir portas que levam ao desconhecido, sobre fantasmas escondidos em porões, sobre apertar botões que podem significar o fim. Eu vivenciei essas experiências bem recentemente, inclusive. Então, para mim, essa música passou a representar algo a mais. Com ela, eu notei que o medo não é só algo histórico. É íntimo.
Eu tinha medo do mar. Assim, com verbo no passado mesmo. Não dessas águas mansas que beijam a areia, mas do mar de verdade, o que engole, arrasta e some. Medo da imensidão que não se pode conter, medo de não voltar. O mar me parece uma grande força que sussurra “aqui você não tem controle”. Inclusive, controle é algo que eu teimo em achar que tenho, até que ele mostra o quão gigante é a minha impotência. Eu percebi isso mais nitidamente quando a realidade arrancou a minha bússola, desfez o meu mapa, levou o meu farol. Em pleno dia da mulher, Tia Lidu, a pessoa que eu mais amo, a mãe que não gerou meu corpo, mas gerou minha alma, foi morar na imensidão. Mais uma vez, lembrei de Belchior, quando senti o peso de saber que “eu tenho medo e já aconteceu”. Perdê-la sempre foi meu medo número um. Tão real e presente que impactava até a força de outros medos em mim. Assim, tentei avaliar esses outros, conhecê-los, e dar a notícia que até eles temiam.

Um deles era o medo de mudar de caminho. Medo de seguir uma nova profissão, de me reinventar, de me lançar no incerto sem a garantia do chão. Tia Lidu sempre esteve ali, me lembrando que eu podia, que eu sabia, que eu devia. Me dizia que o medo era só um vento forte, e que ventos também empurram barcos. Me deu até uma medalha religiosa para simbolizar tudo isso. Agora, sem a voz e o abraço de refúgio, tenho ainda muito medo e uma medalha, mas menos motivação. Faz sentido sem ela aqui para ver meu voo? Não sei. Resta-me apenas confiar que ela sussurra no silêncio e que sua fé em mim ainda me empurra para frente. Era para onde ela iria.
Havia ainda outro medo na minha lista, um que se arrastava nos cantos da minha mente: o medo de mim mesma. Especificamente dos meus nervos, das crises, dos momentos em que o corpo não me obedece e eu perco o próprio controle. Inclusive, das vezes que dei de cara com a ausência de mim, era a Tia Lidu que me direcionava a um espelho. Que me olhava nos olhos e dizia “eu tô aqui”. Que me ancorava ao chão quando tudo dentro de mim era vendaval. Agora, quando o pavor sobe pelo peito, quando a vertigem ameaça me tomar, eu preciso encontrar essa âncora dentro de mim. Preciso ser para mim o que ela foi. E talvez isso seja o mais difícil. Tenho medo de não conseguir.
Com essa e tantas outras presenças, resumidas agora ao espírito, eu sei que o fantasma que estava no porão já saiu de lá e se sentou à mesa de jantar, com as pernas para cima e tudo. Enquanto esteve lá, ele foi, principalmente, uma espera. Antes de sair, sacudiu tudo até sobrar só um vazio, e o vazio, paradoxalmente, não teme nada. Quando atravessou a porta e eu pude dar de cara com ele, esqueci de tentar me preparar para um detalhe: quando o medo se concretiza, o tempo não para. Os piores dias ainda virão, e tudo segue absolutamente normal, menos você.
Embora Belchior aborde o medo na música que citei, a melodia dela não transmite o mesmo terror presente na letra. Ela tem um tom melancólico, mais próximo da lamentação do que da revolta. Eu também apenas lamento. Lamento como quem observa o mar ao entardecer, sabendo que o sol que se põe jamais será o mesmo, mas confiando que, no próximo dia, ainda haverá luz. Lamento como quem ouve o vento carregar uma voz querida e se pergunta se foi só um eco ou se era mesmo ela, tentando dizer que está por perto. Lamento como quem sabe que o tempo leva, mas também transforma, e que certas dores são semente, ainda que o fruto demore a vir. Mas tem uma coisa que não lamento e muito menos temo: o remorso. Ele não existe em mim. Eu sei o quanto amei e expus esse amor em vida, em carne, osso e alma.
Assim, o medo, que antes paralisava, agora empurra. Ele não deixa nenhuma escolha senão seguir. É que o pior que eu podia imaginar já veio, já aconteceu, e de alguma forma eu ainda estou — não por completo — aqui. A coragem, virtude muito exigida pela vida, não nasce só de uma escolha, mas também de uma ruptura. O que mais pode me assustar agora? Se eu encarei o que para mim seria o fim do mundo, o que há nas águas profundas que possa me deter? Assim recebi, dos braços da morte, a coragem de uma mulher tão forte que morreu dia 8 de março, dia em que o mundo para e homenageia a força dessas criaturas. E então o mar, outrora monstruoso, se torna só água. O tempo, antes cruel, se torna só tempo. A incerteza, que tanto paralisava, se torna uma aventura. Apesar de eu achar que minha tia já sabe, eu queria dizer para ela que ainda sinto medo, mas que agora ele é um animal domesticado, que corre ao meu lado. Que me lembra que só tememos aquilo que ainda não vivemos, e que, uma vez vivido, já não é mais medo. É uma história, um degrau, um palco. Foi assim para Belchior.