
José de Alencar escreveu Iracema com o sangue e os sonhos de uma América colonial. O nome da virgem dos lábios de mel, inclusive, é um anagrama de “América”. O amor proibido entre a jovem indígena e o português Martim simboliza, para Alencar, o nascimento da identidade brasileira.
Um país continental não há de ser, em nada, único. As Iracemas não ficam restritas à Serra de Maranguape, mas se refletem nas outras cinco regiões brasileiras, chegando até o Sírio de Nazaré, em Belém do Pará. Com direção de Orlando Senna e Jorge Bodanzky, “Iracema — Uma Transa Amazônica”, foi finalizado em 1974, mas poderia muito bem ter sido no mês passado. É só iniciando com o saudoso som dos programas de rádio que a produção nos lembra sua real idade.
Censurado pela Ditadura Civil-Militar-Empresarial, o filme só veio a ser lançado de forma oficial no Brasil em 1981. Aqui, a Iracema (Edna de Cássia), do interior, é lançada rumo à capital com a família. Após conhecer o motorista e negociante de madeira Sebastião “Tião Brasil Grande” (Paulo César Pereio), a adolescente é colocada frente à frente aos dilemas da Transamazônica, oficialmente BR-230, fruto do projeto militar de integração nacional. Com os versos “Do destino ninguém foge” no parachoque de seu caminhão, Tião leva Iracema numa viagem entre a estrada de asfalto e o chão aterrado.

Uma das primeiras interações entre os personagens chama a atenção pelas camadas. Ao perguntar à jovem se ela se considera branca, Iracema responde que é “filha de brasileiro” e, por consequência, resultado da mestiçagem cultural que forma o povo deste país. Embora muitos não saibam exatamente a origem de suas famílias, de um aspecto podem ter certeza: sangues vermelhos, pretos e brancos, mesmo em distintas medidas, bombeiam seus corações.
Com a roteirização de Senna, a narrativa é construída de jeito complexo e híbrido, misturando elementos de documentário e ficção para borrar as fronteiras entre o real e o encenado. Essa escolha estética expõe a profundidade da realidade amazônica, ao mesmo tempo em que questiona a própria possibilidade de representação fiel de um Brasil que não entrega respostas fáceis, mas força o espectador a encarar as contradições.
Levando prêmios no 13° Festival de de Brasília e outros tantos internacionais, o documentário discute questões não apenas de exploração das terras nortistas e o problema do garimpo ilegal que, mesmo cinco décadas depois, continua vigente, mas igualmente problemetiza o próprio entendimento sobre a natureza e a concepção de progresso. Emblemas como “Brasil, ame-o ou deixe-o” e “Ninguém segura o grande país” inundam sutilmente o filme, fazendo seus devidos papéis de instigar aqueles espectadores mais atentos e causando o bom incômodo.
O signo da pátria, igualmente, aparece forte aqui. A “verdadeira mãe” e de onde a energia advém, seja do auto sustento pelo cuidado com a terra, seja do extrativismo desenfreado. As queimadas da floresta, tão presentes no cotidiano jornalístico hodierno, são enfatizadas. Numa simbiose entre imagens estáticas, movimentos de câmeras sutís, planos fechados nos rostos e detalhes dos personagens e do ambiente, a fotografia, comandada por Bodanzky, faz gritar o paradoxo entre o passado e o presente.
Vale pontuar a Amazônia como tema cativo nas produções do cineasta paulista. Olhando para sua filmografia, vemos outros filmes como “Amazônia, o Último Eldorado” (1984) e, mais recentemente, “Amazônia a Nova Minamata?” (2022), que, de forma semelhante ao documentário de 1974, problematizam a violência para com os trabalhadores e a pressão dos garimpeiros na região, respectivamente.
“Iracema – Uma Transa Amazônica” foi nomeado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine), em 2015, como um dos 100 melhores filmes nacionais de todos os tempos. Para ter uma experiência completa com o doc talvez seja, realmente, necessário um amadurecimento de idade e repertório, mas que não exclui a possibilidade de que amantes mais jovens do cinema brasileiro se disponham a conhecer a obra. Agora, em alta qualidade de imagem e som.