Lei de Cotas: uma reparação histórica

Texto de Lucas Lima, aprendiz da religiosidade afrodiaspórica, escritor e defensor da pauta racial
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O caminho é longo, mas na medida em que abrimos nossa consciência para a questão racial no Brasil, estamos abrindo espaço para que cada vez se fortaleça o enfrentamento às desigualdades históricas / Foto: Divulgação

O contexto histórico da LEI DE COTAS está diretamente ligado ao período da escravidão e às lutas dos movimentos liderados pela comunidade negra.

A aprovação da lei 12.711/2012 foi um resultado da contínua luta dos movimentos sociais (Negros & Indígenas) para assegurar dignidade humana, acesso à educação e, claro, reparação histórica para toda uma comunidade que se viu, por quase 4 séculos, esmagada por uma elite majoritariamente branca e racista.

Os efeitos da escravidão são sentidos até hoje em todo o Brasil. Ao olharmos a construção geográfica da periferia, é possível notar a ausência grave de políticas públicas eficazes para acabar com a alta taxa de desigualdade social nessas regiões. Comunidades inteiras sofrem os efeitos colaterais de mais de trezentos anos de trabalho escravo e do não respeito à vida.

As chamadas ações afirmativas, tais como a Lei de Cotas, são importantes conquistas para se alcançar o pleno equilíbrio social. Entretanto, tais conquistas carregam um peso histórico que precisa ser verdadeiramente estudado.

Pensar uma legislação de reparação histórica, ainda mais durante o século 20, era visto como uma utopia. A raiz dessa utopia estava no próprio imaginário do povo brasileiro que, trazendo no inconsciente o racismo, achava impossível transformar em lei as políticas de ações afirmativas. Essa discussão ganhou força no final dos anos 1990 e início dos anos 2000.

Todavia, o inconformismo já rondava o Brasil durante os anos 1980. A falta de políticas visando o enfrentamento do racismo era um tapa, dado pelo Estado, na cara da comunidade negra brasileira e de demais grupos minoritários historicamente perseguidos e desumanizados.

O Movimento Negro Unificado, criado em 1978, foi uma das principais organizações negras no Brasil a denunciar a crueldade promovida pelo racismo sistêmico e estrutural. Sendo o racismo uma ferramenta de desmantelo social e humano, as Ações Afirmativas vão de encontro com essa anomalia política, visando enfrentar a discriminação e o preconceito, frutos da chamada estigmatização de corpos.

Sim, o racismo é um projeto político que vem se arrastando ao longo de toda a formação histórica do Brasil e do mundo.

No papel, a escravidão foi abolida do Brasil em 1888. Princesa Isabel, a moça que assina a abolição, esqueceu-se de que o país havia sido nutrido por um intenso e lucrativo trabalho escravo que perdurou quase quatro séculos. Os senhores donos de terras, amantes do dinheiro e submissos do Ego animalesco, não concordaram com a abolição.

Na prática, a população negra ainda sofria as consequências de quase quatrocentos anos de exploração…

Em 1988, uma marcha organizada pela comunidade negra do Estado do Rio de Janeiro, intitulada de “marcha contra a farsa da abolição”, foi duramente reprimida pelo uso da força estatal: a Polícia Militar. No mesmo ano em que marcava o centenário da abolição, outros importantes levantes e movimentos sociais eclodiram ao redor do país, contestando a abolição da escravidão assinada pela então princesa Isabel.

Teria a princesa Isabel assinado a abolição ou assinado uma concessão? Isso deu espaço para se criar no país uma verdadeira falácia: o mito da democracia racial.

A abolição da escravidão não assegurou reparação de nenhuma natureza para as milhares de pessoas afetadas por um conjunto de leis racistas e segregacionistas. A população negra brasileira entrou para a vida social, trazendo na pele, as muitas marcas do sofrimento promovido pelo colonizador e seus algozes ao longo de muitos anos.

Essa população, carente de amparo jurídico e psicológico, se viu totalmente despreparada econômica e culturalmente. Toda essa população representava o grosso das classes de baixo poder aquisitivo. Sua raiz cultural lhe havia sido tirada, rasgada e banalizada pelo branco que carregava a cruz cristã como símbolo maior da colonização europeia. Seus traços eram taxados de animalescos e diabólicos. Antes de 1888, muitos negros alcançavam a liberdade por meio da fuga.

Uma vez em fuga, o negro buscava abrigo e proteção nos inúmeros Quilombos e demais agrupamentos de resistência à perseguição racial que se instalara no Brasil. Para compreender melhor as dificuldades impostas à população negra, lembramos aqui algumas leis direcionadas ao povo marginalizado:

1837 – Primeira lei de educação: negros não podem ir à escola.

Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837: “São proibidos de frequentar as escolas públicas: Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas. Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”. A lei nº 1 do Brasil já mostrava para quem era esse país!

1850 – Lei de terras: negros não podem ser proprietários de terras.

Lei nº 601 de 18 de setembro de 1850: aprovada no mesmo mês e ano da lei Eusébio de Queirós (Lei nº 581 de 4 de set de 1850), que previa o fim do tráfico negreiro. A Lei de Terras, como ficou conhecida, foi uma antecipação de grandes fazendeiros e políticos latifundiários que queriam impedir que negros pudessem ter suas próprias propriedades de terras. A abolição estava surgindo no horizonte e tudo que eles menos queriam é que negros pudessem ser seus concorrentes.

1871 – Lei do Ventre Livre

Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871 – filhos de mulheres escravizadas nascidos a partir desta data ficariam livres. Agora me diz, uma criança, ainda que livre, vive como? Com a mãe. E se a mãe é escrava?

A realidade é que essas crianças cresciam escravas e permaneciam assim até que a mãe fosse liberta – algo conquistado pela compra da carta de alforria por meio das irmandades de negros ou mesmo pela fuga.

Hora, é de certo afirmar que, com base em todo o modelo legislativo da época, o negro brasileiro era (continua sendo) o grande alvo da branquitude elitista que dominava (domina) as grandes cidades e metrópoles do país. A condição jurídica de cidadão livre dado ao negro foi um avanço, sem dúvida. Mas, cabe aqui dizer, que esse avanço foi puramente simbólico, abstrato.

Ainda que o ano de 1888 marque um importante momento na luta antirracista, socioculturalmente, a condição do negro não mudou. Dois fatores explicam essa situação:

A) A estrutura de dominação da sociedade brasileira não se alterou. Os poderosos, aqueles que haviam ferido os direitos básicos da vida humana, não foram devidamente punidos pela Lei. Que lei?!

B) A população negra, mesmo juridicamente liberta, não estava psicologicamente preparada para enfrentar os novos desafios da vida social, restando-lhes a humilhação humana e a miséria como fruto da desordem gerada pela violência escravocrata.

Sobre isso, Guerreiro Ramos, importante sociólogo, servidor público de renome e um dos grandes estudiosos da temática racial, esclarece:

“O idealismo utópico dos homens do Império e da República fazia da liberdade uma condição jurídica. Animados por esse idealismo utópico, os homens da abolição deram ao negro a condição jurídica de cidadão livre. Mas sabe-se, hoje, que a liberdade é mais que uma condição jurídica, é uma situação complexa, dinamizada por fatores psicológicos e sociais numerosos”.

Contextualizado tudo isso, temos agora uma dimensão um tanto quanto mais clara sobre a importância de assegurar políticas afirmativas tais como a LEI DE COTAS.

A lei reconhece os efeitos de séculos de escravidão e exclusão social que afetaram principalmente a população negra, indígena e de baixa renda no Brasil. A Lei de Cotas, ao reservar vagas em instituições federais de ensino para esses grupos, procura corrigir essas inúmeras desigualdades históricas tão profundamente marcadas em uma grande parcela da população.

Entretanto, como nem tudo é um mar de rosas, a população negra ainda precisa resistir aos levantes absurdos da ideologia propagada por grupos políticos ligados à ala direitista do país. A direita política brasileira se utiliza de algumas afirmações repetitivas e desconectadas do contexto histórico, sociológico, psicológico e até mesmo de dados e estatísticas comprovados.

Um dos argumentos mais repetidos por políticos de Direita, como as fala de Eduardo Bolsonaro e Nikolas Ferreira, é de que “as cotas ferem a meritocracia”. No entanto, essa visão foge totalmente da realidade, escancarando um olhar falso sobre igualdade de oportunidades. Essa vã e ignorante afirmação pressupõe que todos, sem distinção de nenhuma natureza, têm as mesmas condições de ascensão social e econômica.

Todavia, como já falado, os dados, estatísticas e os fatos históricos evidenciam um abismo social gigantesco em todo o território nacional. Ainda dentro das falas e afirmações desconexas da direita política, outro discurso comum é o de que as cotas são “uma espécie de racismo reverso”. Essa narrativa desconsidera o conceito do racismo estrutural e ignora os mais diversos privilégios históricos que as pessoas brancas usufruem no Brasil desde o período da colonização.

Nota-se que, não almejando o bem estar social, a direita brasileira cria narrativas totalmente descompromissadas da verdade. Um verdadeiro absurdo. Ignorantes ilustrados. Eis aí o perfil destes que, sem ao menos estudarem a complexidade étnico-racial do Brasil, criam narrativas infladas que afastam a sociedade do debate responsável e sério sobre os efeitos desastrosos de anos de exploração racial.

Em 29 de agosto de 2012, a presidenta Dilma Rousseff sancionou a Lei de número 12.711/2012. A lei apresentou a institucionalização de uma política de reparação e inclusão. Seguindo o princípio da equidade, a lei foi assinada pela petista, abrindo caminhos para que grupos marginalizados e historicamente perseguidos tivessem acesso ao ensino acadêmico.

Diversas pesquisas mostram que os estudantes beneficiados pela Lei de Cotas, apresentam bom desempenho acadêmico e, muitas vezes, esses mesmos estudantes cotistas superam outros estudantes não cotistas. Isso reforça a ideia de que a desigualdade no acesso não está relacionada à capacidade intelectual, mas às oportunidades que são oferecidas.

A lei previa uma revisão após dez anos, o que, é claro, gerou intensos e acalorados debates sobre sua continuidade. Contudo, essa tal revisão reafirmou a importância de se manter as cotas e o compromisso do Governo Brasileiro no enfrentamento do racismo estrutural.

Movimentos liderados pela comunidade negra foram essenciais para a implementação de ações afirmativas no Brasil e no mundo. Precisamos olhar para a Lei de Cotas como uma política pública de suma importância para a vida de muitos brasileiros e brasileiras. Entender sua aplicação e seus resultados é importante para que continuemos a reafirmar sua relevância na contínua luta antirracista.

O caminho é longo, mas na medida em que abrimos nossa consciência para a questão racial no Brasil, estamos abrindo espaço para que cada vez se fortaleça o enfrentamento às desigualdades históricas. Estaremos assim, progredindo na construção de uma sociedade cada vez mais democrática e plural.

Depoimento de Jorge Gauthier, jovem beneficiado pela Lei de Cotas:

“Se elas não existissem, teria sido muito mais difícil continuar na universidade, cursando os quatro anos da graduação, devido à distância de realidade na convivência com o perfil clássico dos estudantes que sempre frequentaram a UFBA – brancos e de elite, ou pessoas de classes um pouco abastadas”.

Ele destaca que o fato de ter encontrado outros estudantes com histórias e vivências semelhantes às suas foi determinante para sua permanência, devido à “rede de apoio mútuo, estabelecida entre esses iguais: estudar juntos, partilhar custos e transportes foi fundamental para todos concluírem o curso, e o índice de desistência foi muito baixo – apenas uma pessoa desistiu do curso por questões financeiras”.

Jorge Gauthier é graduado em Comunicação Social/Jornalismo e especializado em Jornalismo Científico e Tecnológico, ambos pela UFBA.

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