
Quando tomei conhecimento da última turnê que Milton faria para finalizar sua carreira em cima de um palco, sabia que muito provavelmente não teria o privilégio de vê-lo, pois não viria para a minha cidade e todas as viagens programadas para aquele ano não coincidiam com as datas dos shows.
Nunca pensei que fosse sentir tanto por não estar presente, mas a sua última apresentação n’A Última Sessão de Música, ocorrida no estádio do Mineirão, veio seguida da morte de Gal Costa, quem eu tinha visto havia um ano e viria novamente no Festival Primavera Sound São Paulo 2022, se não fosse pelo seu estado de saúde.
Pensei sobre estar faltando com os artistas que amo. Fazia isto com Milton. E aquilo perturbou a minha cabeça. A Última Sessão de Música nunca ocorreu para mim e eu também nunca pude ver Bituca ao vivo.

Estou falando de um artista que cresci ouvindo em inconsciência. À criança que fui, tudo ecoava Milton, era fácil escutá-lo, inclusive, em sonhos – onde acredito que a sua música goste de estar: na fantasia e no abstrato. Esta atinge um lado estranho de nós e retira uma parte para a biópsia. Até que o laudo são as cócegas e o arrepio pela melodia misteriosa e esotérica, mas principalmente pela voz que parece guardar toda a doçura e entendimento sobre a eternidade, das vezes em que não conseguimos explicar a infinitude do universo e tudo o que é oculto, inclusive, de nós mesmos.
Falar de Milton é particularmente difícil para mim. Sua música é dor e paz, a melancolia que precisa existir para que haja a alegria e a esperança, é um arco-íris em meio a tempestades e o próprio céu nublado. Milton faz existir a conversa entre o bem e o mal que há em nós e trata de fazê-los dançar como se não enxergassem as diferenças. Todo mérito dado a este brilhante homem, ainda pode ser pouco.
Temos a aprender não apenas sobre a música, mas sobre a arte enquanto parte inerente da vida, o que faz pulsar as veias e a magia que existe, etérea, profunda, invisível e tão sensorial, que só existe no âmbito artístico, no que chega mais próximo ao divino e à perfeição. Sempre foi possível voar.
Milton Bituca Nascimento, o filme
O filme Milton Bituca Nascimento, explora as vertentes do ser Milton, colocando a música em grande destaque, o que não é de se admirar. Uma aura celestial envolve os primeiros minutos da obra, que embarca na certeza de que existe um gênio dentro de Bituca, o que já é de conhecimento entre seus admiradores.
O documentário é um recorte dos seus últimos momentos em cima de um palco, nos shows de sua última turnê, em 2022, que rodou o Brasil, começando pelo Rio de Janeiro; a Europa, passando por Portugal, Itália e Inglaterra; voltando ao Brasil nas cidades de São Paulo e novamente o Rio de Janeiro; os Estados Unidos, na Flórida, Nova Iorque e Boston; e concluindo de volta ao Brasil em seu último show no estádio do Mineirão em Belo Horizonte, Minas Gerais.
Com narração de Fernanda Montenegro, o longa se constrói em um viés de fábula, talvez pela voz da atriz instaurar fascínio, ou mesmo pelo roteiro acreditar que a vida de Milton é digna de um “conto de fadas”. Existe sentido no feito, porque além de convidativo, casa com a estética serena e enigmática que abraça a carreira do artista, mas em determinado momento se torna enfadonho diante da quantidade de analogias e metáforas postas sem qualquer medida.
O filme também faz questão de correlacionar Milton à escuta a todo momento, pois parece entender que, antes de tudo, ainda menino, era principalmente um ouvinte atento. Fato que o fez perceber a música muito mais como sua anima do que como seu subterfúgio. Para mim, esta forma de contar sua história é interessante, pois conecta o telespectador à sua excepcionalidade.
Como obra documental, não posso falar que faz o mesmo que faz como obra de apreciação. Parece que o filme não se importa em falar de suas raízes, de narrar seus passos, enquanto menino, enquanto a música era novidade. Passa rapidamente pela sua relação com a mãe, pelo que viveu na ditadura, pelo nascimento de “Clube da Esquina”.
O longa traz o relato de ilustres artistas brasileiros como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Simone, Chico Buarque, Mano Brown e Maria Gadú. Além de muitos artistas internacionais. De forma, talvez, desnecessária, pois nenhum adentra tanto no Milton enquanto Bituca, no que manifestava ser nas entrelinhas, e sim, no que conquistou enquanto importante artista. Poderia, sim, ser mais profundo e complexo, mas é básico o tempo inteiro.
Não existe tanto a ser dito, exatamente pelo filme ser o eterno looping de uma fórmula. Em cada cidade que a turnê pisa há algo a ser manifestado por algum desses artistas de modo a reiterar os feitos de Milton ou o que ele foi para o Brasil e para a música brasileira.
Gostaria muito mais de assistir a um filme que exploraria a significância de Minas Gerais para o artista, lugar principal de suas ideias. Entender por mais difícil que fosse o raciocínio de suas composições.
Milton Bituca Nascimento é menos que deveria. Sua turnê, que era para ser um detalhe, neste filme virou o que pareceu ser a maior coisa que já fez, o que não é, sequer de longe.