“Na Beira” revela um coletivo que se despe na margem e convida o público a atravessar junto

A encenação parte das memórias compartilhadas nos mais de 20 anos de Grupo Garajal
“Na Beira” é, antes de tudo, um experimento cênico que desloca / Foto: Divulgação

A arte é cara. Não apenas consumi-la, mas criá-la exige força. É quase como nadar contra a maré em um oceano que ameaça te afogar, mas que, ao mesmo tempo, permite boiar. Com a pandemia, convencer o público a sair de casa e ir até um teatro tornou-se ainda mais difícil. O resultado? Rostos cada vez mais semelhantes a cada apresentação, sobretudo em produções locais. Mas, como tudo, isso também carrega sua beleza: a de se reconhecer no outro, entender suas dores e seus alívios.

Na Beira” é, antes de tudo, um experimento cênico que desloca. Num processo quase psicológico, o Grupo Garajal constrói um ambiente íntimo, doméstico, no qual espectadores, sejam outros artistas ou pessoas alheias aos bastidores, são convidados a adentrar o cotidiano de um grupo com mais de duas décadas de história. O público não apenas assiste; é colocado “à margem”, num lugar onde escuta, observa e reconhece os rastros de uma trajetória que segue em movimento. É na fronteira entre a pressão de produzir, que apaga o prazer de criar, e a necessidade de sempre dizer algo que a peça se dissolve.

O espetáculo já começa em movimento. A formação inicial sugere uma viagem, um percurso entre estações simbólicas que compõem o ser artista. Entre memórias contadas e silêncios insinuados, Angélica Gadelha, Arnaldo Moura, Germana Cavalcante e Rayane Mendes compartilham dilemas recorrentes, fragmentos como: “Meu pai ainda acha que o que eu faço é passatempo”. São testemunhos interrompidos, remendados, reinventados. Entre subidas e descidas, todos se encontram na Estação Maninho, homenagem a Mário Jorge Maninho, fundador do grupo, e lembrança da coletividade sem a qual o teatro não existiria.

É ao apresentar as desventuras de quatro artistas e, simultaneamente, do próprio Garajal que “Na Beira” transforma o palco em terreno vivo. Através de um mosaico de lembranças e desafios, tece-se uma narrativa de alegrias, frustrações, renúncias e descobertas acumuladas. Quatro corpos em cena carregam as vozes das mais de quinze pessoas que atravessaram o coletivo, e o espectador sente o rasgo dessas histórias.

No cenário, a mistura de cores se entrelaça com a cotidianidade dos objetos cênicos. Andaimes, figurinos e referências infinitas evocam a vida diária do ator. Chamadas pelo “Zé”, máscaras, projeção de voz, dilemas íntimos e coletivos sobre o que é ou não original no palco ganham forma numa dramaturgia que rasga e costura simultaneamente.

Sentado ao redor dos atores, o público deixa de ocupar uma poltrona frontal: torna-se quase uma moldura viva desse palco aberto, espaço de vizinhança cênica. A iluminação remete aos tons amarelados dos postes de rua, reiterando a sensação de que o teatro nasce do ordinário, do chão, do corpo que encontra outro corpo.

Entre o público, havia quem tratasse o espetáculo como casa, completando frases sem esforço, acompanhando como quem reencontra um velho amigo. “Já sabe até o texto”, brinca Germana, em referência à familiaridade que não denuncia previsibilidade, mas cria a rara sensação de estar entre os seus, partilhando histórias, fotos, memórias e brindes improvisados.

A música assume papel primordial. Não só convida o público a dançar, como mistura sentimentos: a alegria que se funde com a saudade; a tristeza que se transforma em força. “ESTRADA” é um exemplo perfeito. E talvez nada seja mais contundente do que a imagem final: os atores sentados no chão, olhos marejados, cantando em uníssono versos que se tornam quase uma oração. “Meu tempo é memória, minha memória é presença” pulsa a vida de um grupo que vive da estrada e pela estrada, que entende que a arte também precisa sentar, respirar e se deixar levar pelo nada.

No fim, “Na Beira” é uma convocatória. Servido em colheres de cuscuz, o espetáculo é um convite a olhar para aquilo que se sustenta quando o fazer artístico é atravessado pelo tempo, pelo cansaço, pela delicadeza e pela vontade de seguir. É o sentimento de estar entre os seus que permanece. Não demora, e todos começam a conversar com intimidade. A peça forma uma comunidade em que a arte é cara, no sentido de preciosa, querida.

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