O espaço sensível do cinema

Texto de Lucas Paiva, Mestre em Comunicação e jornalista com experiência em metodologia de pesquisa
Compartilhar
O sensível, aqui, não é o oposto do racional, mas sua condição de possibilidade / Foto: Divulgação

Já faz alguns anos que finalizei o curso de mestrado em Comunicação, porém, nunca me esqueci de quanto o cinema é, desde sua origem, um território ambíguo: ao mesmo tempo técnica e arte, espetáculo e linguagem, documento e ficção. 

Talvez sua característica mais profunda seja ser, antes de tudo, um espaço de experiência — uma experiência que se dá não apenas pela visão, mas pelo corpo, pelos afetos, pela sensibilidade. Pensar o cinema enquanto espaço sensitivo significa deslocar o olhar da representação para a presença, da narrativa para a sensação, do discurso para o gesto. Mais do que contar histórias, o cinema cria modos de sentir. E é nesse ponto que se encontra o seu potencial estético e político.

Hoje, proponho que façamos uma viagem nebulosa neste espaço, refletindo brevemente sobre como o sensível encontra no cinema uma de suas formulações mais férteis. O tema é amplo e não escrevo para esgotá-lo, mas sim, para tornar ir colocando as peças nesse quebra-cabeça que retomarei ao longo de outras colunas. Sigamos, então.

I.

No livro A partilha do sensível, o filósofo francês Jacques Rancière propõe que a arte — e, por consequência, o cinema — não deve ser compreendida apenas como veículo de mensagens, mas como reconfiguração do campo do sensível. 

Partilhar o sensível é, para Rancière, uma forma de divisão do que pode ser visto, dito e pensado em determinado tempo e espaço. O cinema, nesse contexto, intervém nessa partilha ao redistribuir as formas do visível e do audível, criando novos regimes de percepção. Ou seja, aqui não se trata apenas da busca por um conteúdo “político” na imagem cinematográfica, mas sim, de perceber como ela reorganiza o campo do sensível, e, com isso, interfere na maneira como percebemos o mundo.

Começamos de maneira árida, mas ainda não é momento de desistir. Vamos agora para o pensamento do francês Gilles Deleuze, para quem o cinema é uma máquina de pensamento sensível. O que isso quer dizer? Em A imagem-movimento e A imagem-tempo, Deleuze propõe que o cinema não apenas representa o real, mas produz pensamento por meio de imagens. 

A imagem-movimento, ligada ao cinema clássico, articula percepções e ações em um encadeamento lógico, próximo à narrativa tradicional. Já a imagem-tempo, que emerge com o cinema moderno, rompe com a linearidade causal e nos coloca diante de durações puras, de tempos suspensos, de corpos que sentem antes de agir. É nessa quebra da lógica representacional que o cinema se abre à experiência do sensível.

Deleuze, influenciado por Bergson, nos ajuda a compreender que o tempo vivido pelo espectador diante do filme não é cronológico, mas qualitativo — é uma duração que se experimenta no corpo, e não no relógio. 

Esse tempo sensível, marcado por gestos que não conduzem necessariamente a ações e por olhares que não prometem respostas, produz um tipo de pensamento que não se forma apenas por conceitos, mas por sensações. Pensar com o cinema, nesse sentido, é permitir-se ser afetado por suas intensidades, por suas pausas, seus ritmos, seus silêncios.

A filósofa e teórica do cinema Vivian Sobchack amplia esse horizonte ao propor, a partir da fenomenologia, uma compreensão do cinema como experiência encarnada. Em The Address of the Eye e Carnal Thoughts, Sobchack argumenta que o corpo do espectador participa ativamente da experiência fílmica. 

Para a autora, assistir a um filme é um ato intercorpóreo, ou, simplesmente, o filme possui um corpo, uma sensorialidade própria, que se comunica com o corpo do espectador. A tela, assim, deixa de ser apenas uma superfície de projeção para tornar-se um lugar de encontro entre corpos que estão sensíveis ao que está sendo projetado.

Laura U. Marks radicaliza ainda mais essa ideia, em sua noção de “imagem tátil”, desenvolvida no livro The Skin of the Film. Para Marks, certos filmes — especialmente aqueles produzidos fora do eixo hegemônico, como o cinema experimental, o cinema diasporicamente situado ou o cinema de minorias — produzem imagens que evocam texturas, cheiros, memórias sensoriais. 

São imagens que não se destinam apenas ao olhar, mas que parecem convocar os outros sentidos, especialmente o tato. A “imagem tátil” de Marks nos obriga a pensar o cinema não como uma arte visual, mas como uma arte da presença sensorial.

II.

O caminho não está sendo fácil, mas peço mais um voto de confiança, pois todas essas abordagens que trouxe, convergem em uma ideia: a de que o cinema não é um mero meio de expressão, mas uma experiência sensível que transforma o espectador. Todos os autores pelos quais lemos, à sua maneira, recusam a compreensão do cinema como uma máquina de significados fechados. Ao contrário, veem no cinema um espaço de abertura, onde o que está em jogo não é apenas o que o filme “diz”, mas o que ele “faz sentir”.

Esse sentir não é apolítico. Pelo contrário, é talvez a dimensão mais política do cinema. Ao provocar afetos, deslocamentos, estranhamentos, o cinema pode alterar o modo como percebemos o outro, o mundo e a nós mesmos. Como diz Rancière, a política da arte está na reconfiguração do sensível — e, nesse sentido, um plano prolongado de um rosto imóvel, um corte abrupto, um som dissonante, podem ter mais potência política do que qualquer discurso explícito. 

O sensível, aqui, não é o oposto do racional, mas sua condição de possibilidade.

Pensar o cinema como espaço sensitivo, portanto, é pensar um cinema que se faz com o corpo, com o tempo e com o gesto. Um cinema que não se limita a representar realidades, mas que cria mundos possíveis, perceptos inéditos, afetos inesperados. Um cinema que convida o espectador a estar no mundo de outro modo — mais atento, mais poroso, mais disponível ao encontro.

Se há algo que o cinema nos ensina, é que ver é sempre mais do que olhar: é estar exposto, é ser afetado, é deixar-se tocar por aquilo que nos escapa. E talvez seja nessa exposição ao sensível que resida a verdadeira força do cinema — não como linguagem, mas como experiência.

Resta ver até onde essa discussão irá nos levar.

Acompanhe o Veredas nas redes sociais e fique por dentro de tudo!

ASSUNTOS

Publicidade

Mais lidas

Publicidade