O Grão e a saudade das histórias para pegar no sono 

Ambientado no sertão cearense, o longa-metragem marca o início da Trilogia da Morte, do diretor Petrus Cariry
Lançado em 2007, o longa marca a estreia de Petrus Cariry na direção / Foto: Divulgação

Como o tempo corre? Na cidade, ele cobra pressa: exige pressão no acelerador e sufoca em uma rotina sem fim. Dias repetidos, barulho constante e poluição sonora são apenas alguns dos elementos que moldam a vida urbana. Mas e quando um sujeito da cidade se aventura pelo interior? Surge outro compasso de existência, um modo diferente de se relacionar consigo mesmo e com os outros.

Longe da metrópole, o tempo não é sinônimo de urgência; mas contemplativo. O cotidiano se arrasta sem segredo: começa com o berro dos cabritos, o canto dos pássaros, e termina com os grilos que atravessam a madrugada.

Com direção de Petrus Cariry e roteiro de Rosemberg Cariry, O Grão (2007) traça uma delicada linha entre vida e morte, passado e presente. A narrativa acompanha o cotidiano de uma família do interior, centrando-se na lenta deterioração da saúde de Perpétua (Leuda Bandeira). Ao seu redor giram outras figuras que reforçam a dimensão afetiva e geracional do enredo: o filho pecuarista (Nanego Lira), a nora que assume o papel de mãe de família (Verônica Cavalcanti) e os netos Zeca (Luiz Felipe Ferreira) e sua irmã (Kelvya Maia), esta atravessando o rito de passagem do casamento e a expectativa de deixar o sertão rumo a Fortaleza.

A apresentação à família de Perpétua convida o espectador a se juntar a uma coreografia lenta, cujo desfecho é esperado, previsível, mas nunca menos doloroso. Humildes, os personagens carregam no rosto a seriedade de quem luta pela sobrevivência, revelando olhos profundos e bocas contidas. 

Há época, aos vinte e oito anos, o jovem diretor Petrus Cariry inaugurou sua cinematografia marcada pelo olhar atento à regionalidade e ao tempo vivido no sertão. Em vez de oferecer uma trama apressada ou repleta de reviravoltas, ele aposta em uma narrativa que se desenrola no tempo daquela família. Cada cena é construída como quem contempla, deixando o silêncio e os pequenos gestos falarem por si. 

O longa-metragem se apresenta ao espectador pelo barulho extremo de um caminhão atravessando as longas estradas do sertão. Esse primeiro plano contrasta fortemente com o restante da narrativa, construída a partir de cenas silenciosas e contemplativas, que nos colocam quase como seres oniscientes, observando o tricotar e o coser.

O Grão” nos convida a desacelerar, a apreciar cada gesto e cada silêncio, mas nunca se torna cansativo. Quando a história chega ao fim, a sensação é de querer permanecer por mais tempo com aqueles personagens, partilhar mais horas de convivência com aquela família, ouvir outras histórias que ainda poderiam ser contadas. 

Quando comparado à filmografia recente do diretor, o primeiro longa-metragem de Petrus revela-se como a base sólida de uma linguagem que se firmaria nos anos seguintes. Como em obras posteriores, a exemplo de “Mais Pesado é o Céu” (2024) e o aguardado “A Praia do Fim do Mundo” (2025), “O Grão” apresenta imagens que encantam por sua simplicidade e profundidade.

A fotografia de Ivo Costa Lopes aposta em planos abertos que percorrem da vastidão do campo às redondezas da vizinhança, do centro tranquilo da cidade ao interior da casa. Chama atenção como cada detalhe daquela morada carrega uma memória compartilhada por quem, um dia, também se deixou levar para além dos muros da Capital. As cores das paredes, a disposição dos cômodos, os móveis e até o som constante da televisão misturado ao canto dos animais despertam uma nostalgia íntima, quase familiar.

É nesse momento, ao pressentir a proximidade da partida, que Perpétua passa a narrar ao neto a história de um rei e uma rainha em busca do filho perdido. O gesto, que é ao mesmo tempo despedida e transmissão de memória, transforma o vínculo entre avó e criança em um elo que suaviza a dor da separação e perpetua a vida através da palavra. Assim, o filme resgata uma tradição familiar e afetiva: a das histórias contadas à beira da cama, que embalam o sono, mas permanecem desperta dentro de nós ao longo da vida.

O Grão” não é apenas o ponto de partida da Trilogia da Morte, mas também a semente de uma proposta estética que Petrus Cariry consolidaria em sua filmografia. Trata-se de um exercício de desaceleração, um convite à contemplação dos ciclos da vida, à descoberta da beleza no que é aparentemente comum e ao reconhecimento da dignidade presente nos pequenos gestos.

Ao preferir a cadência do sertão à pressa urbana, Petrus cria um cinema que continua a ecoar na memória muito depois da sessão, como as histórias que nos embalava para dormir e que, mesmo após o fim da noite, seguem vivas dentro de nós.

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