O hobby do aplauso

Texto de Lucas Paiva, Mestre em Comunicação e jornalista com experiência em metodologia de pesquisa
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Quando deixamos de ter um hobby e começamos a performar? / Foto: Paul Hanaoka

No início, era só tricô. Um ponto aqui, outro ali, uma manta torta, uma tentativa de cachecol. Um jeito manso de passar o tempo entre uma xícara de chá e outra. Mas aí alguém viu. “Você devia postar isso!” E então, com a naturalidade de quem muda a agulha de mão, a manta virou conteúdo. Plano de fundo limpo, luz natural, legenda inspiradora: “Começando a semana com autocuidado e criatividade”. Cem curtidas. Vinte comentários. Um elogio que soava como benção: “influencer do bem”.

A partir dali, já não se sabia mais onde terminava o hobby e começava a performance.

Hoje em dia, tudo que a gente faz precisa ter um impacto, nem que seja emocional. Ler um livro virou “desafio literário”; correr no parque é “meu momento de autocuidado”; cozinhar pão virou curso online, lives, e-books. O prazer da atividade virou subproduto — o principal agora é o espetáculo do que ela representa.

Parece exagero, caro leitor? Pode ser. Mas pense na última vez que você fez algo só por fazer. Não por produtividade, não para postar, não para marcar um “check” simbólico na sua lista de quem está vivo e engajado com a própria existência. Só por fazer, como uma criança desenha uma casa torta sem a menor preocupação com estética ou retorno.

Difícil lembrar, não é mesmo?

Viramos especialistas em transformar lazer em métrica. O hobby agora precisa gerar algo: engajamento, reconhecimento, talvez até um trocado. O bordado ganha moldura e lojinha online; a jardinagem vira tutorial no TikTok; o violão desafinado é pano de fundo para stories com frase de efeito. E tem sempre alguém dizendo que isso é “encontrar propósito”. Mas talvez seja só mais uma forma de domesticar o que era livre.

É como se o ócio precisasse pedir desculpa para existir. Então vestimos nossos hobbies com roupas de performance: “faço isso pra cuidar da minha saúde mental”, “é meu lado empreendedor”, “minha válvula de escape”. Não basta gostar — tem que ser útil, bonito, compartilhável.

E não há nada de errado em compartilhar. A beleza está mesmo em dividir o que se ama. Mas tem uma linha tênue entre dividir e transformar tudo em vitrine. Quando o hobby vira palco, o prazer vira ensaio. E o tempo livre, ironicamente, vira trabalho.

Há algo de triste nisso, mas também algo de muito humano. Afinal, queremos ser vistos. Quer provar que existe, que sente, que cria. Mas talvez a gente tenha esquecido que nem tudo precisa ser visto para ser real. Tem deleite que só floresce no silêncio. Tem alegria que só existe fora do feed. Tem momentos que só fazem sentido quando são nossos — inteiros, secretos, imperfeitos.

Outro dia tentei voltar a escrever. Comprei um caderno novo, uma caneta nova, sentei na sacada e fiz alguns rabiscos nas primeiras linhas. Olhei pro resultado, ri sozinho, e — pela primeira vez em muito tempo — não senti a menor vontade de tirar uma foto. Só fechei o caderno. Era ruim, mas era meu. E talvez seja disso que eu estava precisando: um hobby sem plateia, uma ação sem propósito, uma alegria sem legenda.

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