O tempo é rei; Gil também

Aos 83 anos, seu Gilberto desafia a materialidade do mundo
Sábio nos caminhos da vida, Gilberto Gil propôs justamente para sua última turnê um repertório representando o poente da própria existência calejada e luminosa / Foto: Divulgação/ Giovanni Bianco

Após acompanhar a árdua luta da cantora Preta Gil contra um câncer agressivo, o Brasil recebeu, no domingo, 20 de julho, a notícia de sua partida. Depois de dois anos marcados por dor e aspereza, sua morte se apresenta como um descanso merecido, o repouso de alguém que jamais sairá de cena.

Preta deixa um legado que ecoa feito notas dissonantes num tempo carente de vozes desbravadoras. Para muitos de seus fãs, a artista significou exatamente isso: fortaleza, coragem, amor e audácia. Rompeu paradigmas até os últimos pulsares de seu corpo físico. Ao saber da irreversibilidade de seu quadro, expressou o desejo de retornar ao Brasil — vivia nos Estados Unidos em busca de um tratamento alternativo. Não foi possível. Uma pena.

Mesmo cheia de esperança de vencer a doença, Preta parece ter compreendido que aquela fase talvez fosse um rito de despedida. E, sem dizer com palavras, a cumpriu com dignidade. Essa percepção foi compartilhada pelo próprio pai, Gilberto Gil, em conversa com a imprensa durante a missa de sétimo dia da artista. Com leveza e serenidade, o baiano afirmou aos repórteres que Preta “passou por um longo período de adaptação à partida, ao processo todo de ir embora”, e que a ficha foi caindo aos poucos, inclusive para ela.

A fala e o semblante tão ternos de Gil não pareciam os de um pai que havia perdido a filha poucos dias antes. Isso me chamou atenção, assim como a paz que ele transpareceu ao beijar, com doçura, a testa da cantora no velório. Era de alguém que mesmo não estando imune às dores, sabia do valor da missão e da eternidade.

Não à toa, a última apresentação de Preta em um palco foi ao lado de Gil, em participação de um dos shows da turnê de “Tempo Rei”. Juntos, cantaram “Drão”, canção composta em homenagem à mãe, Sandra Gadelha, e que, diretamente, também conta sua história: “os meninos são todos sãos”. O choro de Gilberto Gil naquele momento já era prelúdio do que estava por vir. Ainda assim, ele seguiu firme, talvez compreendendo, à sua maneira, os dizeres do poeta maranhense: a arte existe porque a vida não basta.

Sábio nos caminhos da vida, Gilberto Gil propôs justamente para sua última turnê um repertório representando o poente da própria existência calejada e luminosa. Nele, afirma que “veio da Bahia cantar” sua “procissão” pelo recôncavo de fé e sincretismo. Chegou no “Expresso 222”,“ao domingo e ao parque” para lembrar que, “quando sobe nesse palco, a sua alma cheira a talco como bumbum de bebê”. É “brasileirinho pelo sotaque, mas de língua internacional”.

Aos 83 anos, seu Gilberto desafia a materialidade do mundo. Desafia até a morte. Por hora meio “estrela”, em outras totalmente esotérico, ele nos pede: “Não chore mais!”. Convida-nos a “fugir para outro lugar”, talvez até outro planeta, onde não existem “cálices”… Onde todos podem, enfim, “falar com Deus”.

A saudade da sua filha Preta sempre vai ser enorme, mas o compositor entende o valor do verso de outro poeta, agora lusitano, que diz: “se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia. Não há nada mais simples. Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra coisa todos os dias são meus”.

É, estamos sempre entre o “olá” e o “adeus”, entre o “encontro e a despedida”. O tempo é rei. Gilberto Gil também é.

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