Terrorismo racial: Estados Unidos e o linchamento do povo negro

Texto de Lucas Lima, aprendiz da religiosidade afrodiaspórica, escritor e defensor da pauta racial
Compartilhar
“O território estadunidense é um exemplo claro de como movimentos supremacistas são utilizados para subjugar e intimidar populações negras” / Foto: Divulgação

O terrorismo racial foi uma das principais engrenagens do colonialismo e ainda hoje perpetua diversas formas de violência contra populações negras ao redor do mundo. Nesse contexto, os Estados Unidos — frequentemente exaltados como a “terra do Tio Sam” — ocupam um papel central na consolidação da supremacia branca e, consequentemente, na manutenção do racismo estrutural.

O território estadunidense é um exemplo claro de como movimentos supremacistas são utilizados para subjugar e intimidar populações negras. Além da violência física e psicológica, a escravidão deixou um rastro doloroso de destruição cultural e religiosa. O racismo em território norte-americano, assim como nas demais regiões do mundo, é um fenômeno enraizado, com exemplos históricos e contemporâneos. Embora tenham ocorrido avanços significativos na política racial das Américas, é preciso desvelar os horrores da política supremacista estadunidense e seus efeitos colaterais ao redor do mundo. O chamado linchamento, longe de ser um ato de justiça popular, foi, e aqui me uso das palavras de Wanderson Dutch, “sistematicamente utilizado como um instrumento de controle social”.

A supremacia branca nos Estados Unidos tem raízes históricas profundas. Trata-se de uma ideologia racista que sustenta a suposta superioridade de pessoas brancas sobre outros grupos, especialmente os negros, e que opera como um sistema de poder voltado ao controle dos corpos e à dominação das demais esferas da sociedade. Pode até assustar, mas esse modelo de organização social, é uma das bases da formação histórica do território norte-americano, além de estar intrinsecamente ligada ao início da colonização e a expansão da escravização de africanos, manifestando-se de diversas formas até hoje.

Ao longo dos anos, o governo do país vem enfrentando obstáculos diversos para minimizar os efeitos da escravidão e acabar, de uma vez por todas, com as inúmeras práticas racistas que ainda assolam seu território. Entretanto, a supremacia branca é, e nesse ponto não há dúvidas, institucionalizada por políticos escancaradamente racistas e eugenistas. Entre 1880 e 1950, mais de 4.000 afro-americanos foram linchados e brutalmente assassinados nos Estados Unidos, de acordo com o EQUAL JUSTICE INITIATIVE (EJI).

Durante o século XX, os Estados Unidos passaram por importantes avanços no setor industrial, tendo uma expansão econômica significativa e consolidando o seu lugar de superpotência mundial. Entretanto, o tão sonhado estilo de vida não era uma realidade para todos os estadunidenses. De um lado, uma parcela da população celebrava os inúmeros avanços e, de outro lado, especialmente na região sul, corpos negros eram queimados, pendurados em árvores, banalizados, violentados, castrados e até queimados vivos.

Todo esse espetáculo do horror, foi legitimado por grupos supremacistas brancos e conservadores religiosos. Muitos desses episódios brutais eram assistidos por dezenas e até centenas de pessoas. Acreditem, era quase que um evento social ver uma pessoa negra ser brutalmente morta em praça pública. A presença de crianças e adolescentes não minimizava as atrocidades, pelo contrário, essas mesmas crianças e adolescentes eram doutrinados e educados a odiar o corpo negro.

Me cabe aqui, escrevendo estas linhas amargas e que dilaceram o íntimo do Ser, trazer alguns dos casos que mais causam revolta dentre tantos outros que foram registrados durante esse período amargo dos Estados Unidos. Como falado anteriormente, escrever sobre isso é reacender a alma dos que vieram antes de nós, que abriram caminho, que permitiram, por meio de sua coragem e força, a possibilidade da minha existência e da existência daqueles que me cercam. A ancestralidade, enquanto escrevo essas palavras, se levanta em sinal de resistência. Essa energia vibra em toda a terra!

O Caso Duck Hill: “Justiça com as próprias mãos

Em 1937, em Duck Hill, Mississippi, dois homens afro-americanos foram linchados em praça pública após serem acusados de um crime jamais provado. Faltavam provas contundentes que os tornassem, de fato, autores dos crimes de roubo e assassinato. Esse ato de violência extrema ilustra a prevalência do linchamento como uma ferramenta de terror racial durante a era Jim Crow no Sul dos Estados Unidos. As leis apresentadas (e facilmente implementadas na esfera política e social norte americana) foram um conjunto de legislações segregacionistas que institucionalizaram o racismo de Estado em território estadunidense.

Elas surgiram após a abolição da escravidão – 1865 – e foram fundamentais para que a supremacia branca se solidificasse, mantendo a segregação racial e a violência física. Robert McDaniels e Roosevelt Townes não passaram por um julgamento digno, não tiveram seus direitos assegurados pelo Estado. Aliás, que Estado? Estes homens foram assassinados por pessoas racistas. Mas não bastava apenas matá-los… ambos foram covardemente queimados vivos com maçaricos de solda. Como eu disse, não houve julgamento, não foram, em nenhum momento, tratados com dignidade. O assassinato de Robert e Roosevelt, assim como outros da mesma natureza, foi noticiado com frieza nos jornais locais. Imagens dos corpos dilacerados e em chamas circularam por todo o Mississipi. Era um acontecimento social, um espetáculo. O corpo negro, nesse sistema, era o palco. Onde há divertimento nisso? Não há! Não deve haver!

O caso de Duck Hill é perturbador em muitos níveis. A falta de justiça enfrentada pelas vítimas de linchamento é dilacerante. É uma segunda morte. Embora o evento que levou ao assassinato de Robert e Rossevelt tenha sido amplamente condenado por algumas partes da sociedade americana, particularmente pelos movimentos de direitos civis e grupos abolicionistas, a ausência de responsabilização legal para os perpetradores continua a perpetuar o ciclo de violência racial que vemos nos dias de hoje. As multidões que acompanhavam esses atos de linchamento eram formadas por ditos “cidadãos de bem”. Eram pessoas com formação acadêmica, donas de casa, policiais, professores, todos reunidos para assistir ao horror desumano: a banalização da vida e a naturalização do assassinato.

Caso Emmett Till: “Será mesmo que fui eu?

O caso de Emmett Till ainda paira na memória dos negros estadunidenses e de toda uma geração moldada na luta pelos diretos civis. O brutal assassinato do jovem adolescente de 14 anos, em 1955, também no Estado de Mississippi, expôs a ferocidade do racismo e da supremacia branca. No dia 24 de agosto de 55, Emmett, que tinha vindo da Califórnia para Money, Mississippi, visitar alguns parentes, entrou em uma mercearia e, segundo uma mulher branca, o garoto teria assobiado para ela e lhe soltado um comentário de cunho sexual.

Dias depois, o esposo da tal moça branca, Roy Bryant, acompanhado de seu meio-irmão, J.W. Milam, sequestraram o pequeno Emmett da casa de seus tios. Roy e seu meio-irmão espancaram brutalmente o jovem Emmett e o mutilaram. O pequeno Emmett teve o corpo amarrado com arame farpado e foi lançado no Rio Tallahatchie. Seu corpo só foi encontrado dias depois do crime, sendo identificado por conta de um anel em seu dedo. A mãe do jovem Emmett, tomada por uma força gigantesca, pediu que o corpo de seu filho fosse exposto: “Quero que vejam o que fizeram com meu filho”.

Roy e J.W.Milam foram absolvidos por um júri formado exclusivamente por homens brancos.

O caso de Emmett é um marco na luta por direitos civis. Ele escancarou as atrocidades promovidas pelo racismo e o quão nociva é a ideologia de uma tal supremacia racial. Sua mãe virou um símbolo de coragem e resistência.

Vale lembrar que, embora o Brasil não tenha vivido sob leis como as Jim Crow dos Estados Unidos, nossa sociedade também se estrutura sobre bases racistas, herdadas diretamente do período escravocrata. Casos como o de Duck Hill e do jovem Emmett, ecoam por aqui e são combustíveis para o avançar da luta social. Os chamados grupos minoritários, sociedades organizadas e que levantam bandeiras importantes para a saúde social do Estado Brasileiro, são importantes núcleos de resistência.

Cada nova vítima racializada, seja em território norte-americano, brasileiro ou em qualquer outra região do mundo, carrega as marcas desse período sombrio do linchamento, do fazer justiça com as próprias mãos. Essas violências fazem parte de um projeto político de controle social baseado na cor da pele. O crescimento da extrema-direita e o uso de plataformas digitais permitiram a reorganização de grupos supremacistas.

Vale destacar aqui que o governo de Donald Trump deu espaço político para o fortalecimento desses grupos radicais, normalizando a violência contra comunidades negras e demais grupos minoritários. A violência se reinventa, mas a resistência também. Seja nas ruas, na escrita politizada, seja na arte enquanto dança ou música, essa resistência fala com a sociedade, conversa com aqueles que verdadeiramente são protetores da vida e que estão abraçados com a luta antirracista.

Por fim, quero deixar alguns relatos reais de pessoas que foram ou tiveram familiares linchados pela política supremacista norte-americana:

“I had a lot of whys, but no one would give me the answers” (James Johnson remembering his relative Wes Johnson, who was lynched in 1937 in Abbeville, AL)

“My family didn’t leave the South – they were chased away from the south” (Doria Dee Johnson remembering her great-great-grandfather Anthony Crawford, who was lynched in 1916 in Abbeville, SC)

“All they did was break up a family” (Luz Myles remembering her grandfather Thomas Miles, who was lynched in 1912 in Shreveport, LA)

“It could have very easily been my grandfather hanging on that same tree” (Tarabu Betserai Kirkland remembering family friend John Hartfield, who was lynched in 1919 in Ellisville, MS)

Para mais informações sobre casos de linchamento em território estadunidense: lynchinginamerica.eji.org

Acompanhe o Veredas nas redes sociais e fique por dentro de tudo!

ASSUNTOS

Publicidade

Mais lidas

Publicidade