
Caro leitor, em algum momento você já parou para refletir sobre o que realmente envolve a organização de um funeral? Não somente o luto inevitável pela perda de um ente querido, mas todo o conjunto de rituais, formalidades e burocracias que essa despedida demanda?
Você já se perguntou quais são as papeladas que temos de lidar? Quanto tempo deve durar a cerimônia? Caso seja realizado em casa, quantos dias deve durar? É obrigatório ser realizado na casa em que o falecido morava? E como receber os parentes, amigos e conhecidos com a devida etiqueta? Será que seria mais prudente contratar alguém para cuidar desses detalhes ou quem sabe até recorrer a um vídeo instrutivo sobre boas maneiras no velório?
Esses são alguns questionamentos — ora práticos, ora absurdamente humanos — que impulsionam The Funeral (1984), obra em que o diretor e roteirista Juzo Itami estreia suas habilidades em longas-metragens.

A sinopse do filme publicada no site da Criterion Collection (e aqui apresentada em tradução livre) – o descreve como sendo uma sátira corajosa sobre o choque entre o antigo e o novo na sociedade japonesa, em que nada, nem mesmo a morte, é considerado tabu.
Através de um humor satírico e dramático, Itami nos apresenta mais do que um retrato de um funeral tradicional japonês, ele transforma a morte em um ponto de partida para que possamos conhecer, analisar e nos conectar com costumes de uma sociedade que por vezes nos parece tão distante. E essa é só uma das inúmeras qualidades que essa comédia melancólica oferece.
Podemos acompanhar, durante os três dias nos quais o filme se passa, um processo de amadurecimento do personagem de Tsutomu Yamazaki, marido da filha do falecido, interpretada pela atriz Nobuko Miyamoto.
A perda de parentes e amigos próximos é uma triste consequência da vida adulta, a qual Wabisuke se vê pela primeira vez nessa posição, que é cansativa, custosa e demanda emocionalmente da pessoa. Desde os primeiros minutos do longa, fica evidente o desconforto — ou a má vontade cômica — do personagem diante da responsabilidade que lhe é imposta.
Wabisuke é jogado à força no papel de organizador desse ritual fúnebre, função que assume mais por obrigação social do que por convicção pessoal. Sutilmente, o filme nos mostra como os rituais em torno da morte se tornam um mercado para muitas pessoas. Wabisuke é pressionado a seguir certas exigências e a tomar decisões como escolher um caixão e negociar o valor pago ao sacerdote, decisões essas que, na prática, ele não toma de fato pois é pressionado a seguir “opiniões profissionais” e a agradar.
Como demonstrado na cena em que o mesmo dá uma mesa feita de ladrilhos caros e especiais ao sacerdote, gesto que deveria simbolizar gratidão, mas que, na verdade, escancara o jogo de aparências e o desejo forçado de agradar essa figura de autoridade espiritual.
Esse é um filme cheio de processos, regras, especificidades e complexidade de um funeral japonês mas também lotado de banalidades, curiosidades e etapas do luto. E é a partir dessa mistura, desse caos, que vem a maior parte do humor do filme, povoado por diversas situações paralelas: desavenças familiares, crianças inquietas, gatos, conversas triviais, subtramas discretas e até traição.
Ainda assim, Itami equilibra com momentos de contemplação. Os planos fixos e longos remetem ao rigor formal e a profundidade hipnotizante do cinema de Yasujirō Ozu.
Na ocasião, a mise-en-scène é milimetricamente composta: há vida em cada canto da tela, mesmo nos gestos mais contidos, nas pausas, nos olhares. Todos esses detalhes ganham protagonismo, revelando a vida insistente em seguir seu curso mesmo diante da morte.
O diretor também abre espaço para momentos criativos. Um exemplo é a cena surreal de uma corrida entre dois carros cujo único propósito é dividir um sanduíche entre os motoristas — uma ideia que beira o absurdo. Outro momento é a encenação teatral realizada pelos parentes mais próximos, logo após o funeral, que funciona como uma espécie de catarse coletiva, onde a dor e o riso se entrelaçam.
Toda essa situação tragicômica é refletida em seus personagens que estão constantemente juntos. A ideia de união é um conceito universal a todos nós seres humanos e ninguém vai enfrentar o luto sozinho. Durante a reunião de três dias, cada pessoa, da sua forma, se conecta e se mostra presente no momento da despedida. Seja cozinhando, discutindo o horário de partida dos convidados, organizando a decoração da sala, espiando o momento da queima do corpo… dificilmente os personagens aparecem na tela sozinhos.
Algumas das piadas presentes no filme podem, à primeira vista, parecer restritas ao universo cultural japonês, exigindo do espectador uma certa familiaridade com suas normas sociais. No entanto, é justamente nesse humor sutil que o filme demonstra ter uma universalidade surpreendente. Como no momento em que o sacerdote, imerso em um discurso excessivamente longo, começa a testar os limites da paciência dos convidados, que já estão sentados em posições desconfortáveis, impostas pelo protocolo do respeito.
A câmera passa a explorar as discretas formas com que cada pessoa tenta burlar o desconforto: um corpo que se inclina levemente para a frente, pés que escapam do rigor da postura correta. Esses gestos revelam o esforço físico e simbólico de moldar o próprio corpo às normas sociais, fato esse nada distante de nós brasileiros.
Todos vivemos em sociedade e isso significa habitar constantemente a tensão entre a obediência às convenções e o impulso de romper com elas. De um lado, a etiqueta; de outro, o desejo pela individualidade, a rebeldia. A câmera de Juzo Itami denúncia, sem dizer uma palavra, o peso dessa conciliação cotidiana, nos revelando o quão desconcertante – e, por vezes, ridículo – pode ser a tentativa de manter as aparências em meio à dor.
Ao final, vemos um Wabisuke mais maduro, capaz de olhar para si mesmo com arrependimento pelos erros do passado. Unidos, os personagens encaram o destino inevitável de todos nós: a morte. Enquanto os créditos sobem, eles queimam as decorações remanescentes do funeral — um gesto simbólico de que, apesar da perda, a vida segue para quem permanece vivo.