Necropolítica: o Estado como ceifador de vidas

Texto de Lucas Lima, aprendiz da religiosidade afrodiaspórica, escritor e defensor da pauta racial
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“Essa normalização da violência é uma realidade cada vez mais viva. Comunidades inteiras, sem o devido amparo Estatal, sofrem seriamente com incursões policiais que, como já bem se sabe, validam suas ações com base na chamada Guerra às Drogas” / Charge: Pinterest

“A gente vê hoje um Estado que adota a política da morte, o uso ilegítimo da força, o extermínio, a política de inimizade. Que faz a divisão entre amigo e inimigo. É o que a gente vê, por exemplo, nas favelas, nas periferias das grandes cidades brasileiras, nos rincões do país. Nossa polícia substitui o Capitão do Mato”, analisa Rosane Borges, jornalista, professora e pesquisadora do Colabor (Centro Multidisciplinar de Pesquisas em Criações Colaborativas e Linguagens Digitais) da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), em entrevista à PONTE.

Desde 2018, o Brasil vem apresentando uma queda no índice de mortes violentas. O país registrou 46.328 casos do gênero em 2023, o menor número em 12 anos, segundo dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Entretanto, apesar de apresentar uma queda significativa no índice de letalidade, o Brasil, quando comparado ao nível internacional, ainda ocupa a 18ª posição. Para alguns especialistas e profissionais de segurança, essa queda não representa alívio ao meio social. Pelo contrário, é preciso compreender a raiz por trás dessa onda de violência. O diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, sociólogo e pesquisador com ampla atuação em estudos sobre segurança pública, afirma que o Estado Brasileiro ainda é marcado por uma profunda e enraizada onda de violência. O Brasil, sob essa perspectiva, é atravessado por diferenças raciais, de gênero e regionais.

Não bastasse o terror promovido pelas facções criminosas, corporações policiais começam a adotar uma política de morte e guerra. A letalidade da força policial no Brasil, que vitimiza em sua grande maioria jovens negros e periféricos, é legitimada pela mão do Estado. Esse mesmo Estado, que deveria cuidar de sua população, em especial dos mais vulneráveis e frágeis, normaliza a violência do crime organizado e de agentes de segurança pública.

Essa normalização da violência é uma realidade cada vez mais viva. Comunidades inteiras, sem o devido amparo Estatal, sofrem seriamente com incursões policiais que, como já bem se sabe, validam suas ações com base na chamada Guerra às Drogas. Ao declarar a criminalização de alguns tipos de psicoativos, o Poder Público deixa de lado o campo científico e encara a questão sob uma óptica falsa.

Recordemos, voltando ao ano de 2018, a chacina que aconteceu aqui em Fortaleza, que resultou na morte de 14 pessoas. Ao tomarmos como referência os dados estatísticos de violência, não será difícil confirmar a falácia da política de Guerras às Drogas. O Ceará, por exemplo, está entre os Estados com maior índice de violência. O ano de 2024 encerrou-se com um aumento no número de homicídios. Dados da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social apontam 3.272 mortes violentas, evidenciando um acréscimo de mais de 10% na onda de violência.

No campo da Filosofia Política, a Necropolítica, conceito criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, vem ganhando cada vez mais notoriedade em meio aos debates decoloniais. Para ele, o termo representa o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Com base no biopoder, conceito apresentado por Foucault, e em suas tecnologias de controlar populações, o “deixar morrer” se torna aceitável. Mas não é aceitável a todos os corpos. O corpo ‘’passível de morte” é aquele que está em risco de perecimento a todo instante devido ao parâmetro definidor primordial da raça.

A população negra no Brasil, em sua grande maioria, estabelece-se em comunidades, que por sua vez, apresentam uma precariedade notória. Achille Mbembe vai ainda mais fundo nesse estudo de normatização da violência, ruminando a intrínseca relação entre colonialismo, racismo e capitalismo. Por isso, Mbembe é considerado um dos poucos teóricos contemporâneos que pensa o contexto mundial atual utilizando-se de ideias foucaultianas para esmiuçar problemáticas de regiões periféricas a fim de demonstrar que estas seguem, ainda hoje, os padrões do que ele chamou de tardo coloniais.

Dentro do seu conceito, Mbembe classifica três características fundamentais para o pleno funcionamento do necropoder – que é uma formação própria da violência – tomando como base de exemplo real os conflitos na região de Gaza e Cisjordânia: Fragmentação territorial, Soberania Vertical & Terra arrasada. Com base nessa classificação por ele exposta, o necropoder atua separando os territórios da colônia, implantando uma narrativa de domínio vertical, de tal forma que a metáfora do topo, é frequentemente exibida, criando cada vez mais novos espaços de violência, deixando marcas profundas no cenário geográfico dessas regiões, empurrando comunidades, favelas e outros espaços de ocupação habitacional ao caos social.

Seguindo essa linha inquietante da marginalização de grupos e pessoas, são muitos os discursos que fortalecem a pseudo ideia de que há lugares subalternizados e que por essa razão podem ser atacados em prol do ‘’bem comum’’. Discursos inflados, revestidos de ódio, são usados por numerosos políticos, e isso podemos notar melhor no nicho mais conservador e radical, para validarem massacres e ataques diversos. Ao observarmos o cenário carcerário no Brasil, é possível ver a necropolítica atuando em todas as unidades prisionais. O tratamento da população carcerária, com punições com foco na privação da liberdade, a superlotação das cadeias e baixas condições sanitárias são reflexos disso. Dois outros exemplos de necropolítica podem ser observados durante todo o período que compreendeu a ditadura militar, período esse em que tivemos a normalização da violência por meio do necropoder, e durante todo o período pandêmico no Brasil.

O vírus, COVID-19, apesar de não escolher categoria social, chegou de forma diferente para populações menos favorecidas. Dessa forma, é de certo afirmar que a população negra, assim como também outros grupos minoritários, são os mais atingidos por essa política de morte.

Para Mbembe, a necropolítica não se dá só por uma instrumentalização da vida, mas também pela aniquilação dos corpos. Não é só deixar morrer, é fazer morrer também. Compreender como funciona o conceito trazido por Mbembe é importante para entendermos como se comportou e como se comporta a sociedade brasileira, tendo em vista que somos um reflexo do nosso cenário político. O Estado, por vezes, adota em sua base estrutural a política da morte, o uso ilegítimo da força, seja essa força por meio da ação desenfreada da polícia ou de grupos criminosos patrocinados pelo Estado opressor.

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