
Quando saí da sessão de Highest 2 Lowest, em Cannes, fiquei com a nítida impressão de estar diante de um diretor em plena forma. A maneira como Spike Lee alia estilo e substância mostra a força de um autor que sabe exatamente o que quer dizer — e como dizer. Ainda sob o impacto, escrevi para O Otimista que ele segue sendo uma das vozes mais originais e afiadas do cinema atual.
Na ocasião, ao concluir minha primeira cobertura do Festival de Cannes, sublinhei como Spike Lee transforma Nova York em algo maior que cenário — ela vira símbolo, personagem, tensão viva. É nesse gesto que ele se aproxima de nomes como Martin Scorsese, a quem, inclusive, homenageou na coletiva de imprensa após o filme. Mas, enquanto Scorsese retrata a cidade com um olhar quase mítico, Lee imprime nas ruas uma energia urgente, carregada de crítica e identidade, fazendo de sua obra um manifesto visual dos tempos em que vivemos.
Em Highest 2 Lowest, sua quinta parceria com Denzel Washington, Spike revisita Céu e Inferno (1963), de Akira Kurosawa, e o refunda à luz da atualidade. A trama, ambientada numa Nova York estilizada como um tabuleiro de poder, é centrada em um magnata da indústria musical que se vê em crise após o sequestro de seu filho. O que começa como um thriller tenso logo se transforma em um estudo profundo sobre ambição, desigualdade e dilemas morais.

A direção de Lee é um espetáculo em si: cortes ritmados como jazz avant-garde, composições de cena que exploram o contraste entre o luxo e a decadência, uma paleta de cores que pulsa com a energia do subtexto e, como de praxe, uma trilha sonora que é personagem e comentário ao mesmo tempo.
Diferentemente de seus filmes mais abertamente políticos — como Destacamento Blood ou Infiltrado na Klan —, aqui a crítica social está diluída com elegância nos subtextos e metáforas visuais. Uma das sequências mais potentes mostra o sequestrador encarando, do chão, o arranha-céu envidraçado do protagonista. Lá no alto, envolto por concreto e indiferença, o executivo parece incapaz de perceber as camadas sociais que sustentam seu império. É o privilégio olhando para o nada, enquanto o nada encara de volta.
Há espaço, também, para o humor cáustico e refinado. Os diálogos afiados lançam farpas contra o cinismo corporativo e a espetacularização da tragédia. O personagem de Washington, ainda que movido pela angústia paternal, parece mais preocupado com sua imagem pública do que com a salvação do filho. Spike transforma essa contradição num dilema maior: quanto vale a redenção de um homem quando seu império está em jogo?
É justamente essa fricção entre sentimento e status que dá profundidade à narrativa. O protagonista torna-se mais do que um personagem: ele se converte em metáfora do poder contemporâneo — vaidoso, frágil e moralmente ambíguo, como a cidade em que vive. Não é todo diretor que consegue fazer isso com tanto esmero.