
Há algumas semanas, fui convidado para participar de um episódio de um podcast de cinema. O podcast se chama Ponto Cego, e o episódio seria sobre Blaxploitation, um subgênero do cinema policial que eu, particularmente, gosto muito e no qual tinha muita vontade de me aprofundar mais. Bem, o convite foi a desculpa de que eu precisava para me dedicar mais ao tema que fez muito sucesso no início dos anos 1970 e mudou o cinema hollywoodiano para sempre.
Quero aqui, então, compartilhar com vocês um pouco do que aprendi e deixar algumas indicações que acho essenciais para quem quer conhecer o Blaxploitation.
Antes do Blaxploitation
Mas, antes de entrarmos no mundo do Blaxploitation, eu acho que vale a pena conversarmos um pouco sobre a história do cinema negro estadunidense e como a população negra era retratada (ou não) em Hollywood.

Antes do surgimento do Blaxploitation, a comunidade negra era pobremente representada no cinema hollywoodiano. Personagens negros eram frequentemente limitados a papéis que reforçavam ideologias racistas e propagavam estereótipos como a “Mammy”, uma mulher negra subserviente dedicada a cuidar de famílias brancas (Hattie McDaniel, em E o Vento Levou, por exemplo); o “Tio Tom”, um homem negro submisso e leal que aceitava seu status inferior; e o “Coon”, uma figura preguiçosa usada para alívio cômico. Existe até um livro que se aprofunda nesses ofensivos estereótipos chamado “Toms, Coons, Mulattoes, Mammies, & Bucks”, escrito por Donald Bogle, um dos mais importantes acadêmicos da área.
Para além desses estereótipos, os atores negros eram sempre escolhidos para interpretar papéis unidimensionais com pouco destaque, que geralmente serviam apenas como escadas para os protagonistas.
Talvez, a grande exceção desse período, seja Sidney Poitier, que conseguiu protagonizar filmes de grande sucesso nos anos 1950 e 1960 e se tornar uma das maiores estrelas de Hollywood. Entre seus filmes de maior destaque, estão Ao Mestre com Carinho, No Calor da Noite e Adivinhe Quem Vem para Jantar, todos lançados em 1967.
Ainda na primeira metade do século XX, fora de Hollywood, surgiram filmes feitos por pessoas negras para audiências negras. Esses filmes ficaram conhecidos como “race films” e foram feitos de 1915, mesmo ano do lançamento de O Nascimento de uma Nação, até 1950, quando Poitier fez seu primeiro filme, O Ódio É Cego, de Joseph L. Mankiewicz.
Os diretores Oscar Micheaux e Spencer Williams são dois dos grandes destaques desse período dos “race films”. Micheaux dirigiu, em 1920, Nos Limites dos Portões, que foi meio que uma resposta a O Nascimento de uma Nação. Alguns dos trabalhos do Micheaux foram lançados em DVD no Brasil recentemente pelo selo Obras Primas do Cinema em uma coleção chamada Cinema Afro-Americano.
No livro “Black Caesars and Foxy Cleopatras: A History of Blaxploitation Cinema” (livro sem título no Brasil), o autor Odie Henderson explica que “os filmes raciais eram os únicos lugares no ramo cinematográfico em que os negros podiam conseguir trabalhos não relacionados à atuação, como escrever, dirigir e compor trilhas sonoras”. Isso só começou a mudar quando Duke Ellington e Billy Strayhorn compuseram a trilha sonora para o drama de corte Anatomia de um Crime, em 1959. Após essa trilha, Ellington fez outra trilha para o filme Paris Vive à Noite (com Poitier no elenco, aliás) e se tornou a primeira pessoa negra indicada ao Oscar de Melhor Trilha Sonora Original.
O surgimento do Blaxploitation
No início dos anos 1970, dois filmes fizeram muito sucesso dentro da comunidade negra estadunidense, e os estúdios de Hollywood perceberam que havia um mercado pouco explorado por eles que poderia ser muito rentável, já que eram filmes que custavam pouco para serem feitos.
Os dois filmes em questão são Riffi no Harlem (1970), dirigido por Ossie Davis, e Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971), dirigido por Melvin Van Peebles. Ambos compartilham características importantes: ambientados em grandes centros urbanos — um em Los Angeles e o outro em Nova Iorque —, com elencos compostos predominantemente por atores negros, e retratando a realidade da comunidade negra nessas cidades. São filmes policiais que dialogam diretamente com a população negra dos Estados Unidos, marcando um momento inédito no cinema. Pela primeira vez, vimos filmes protagonizados por policiais negros investigando crimes ou um homem negro enfrentando a violência policial.
Assim, os estúdios hollywoodianos começaram a encomendar mais e mais filmes feitos para a comunidade negra, e nascia, então, o Blaxploitation – um gênero (há quem defenda chamar de movimento) de muitos ineditismos. Como já conversamos antes, o negro era muito mal representado no cinema feitos nos Estados Unidos. Agora, a população negra poderia, finalmente, se ver na telona. Não era apenas ter um ator negro, era todo o elenco principal com histórias que se passavam em bairros negros. Um momento de representatividade único na história do cinema estadunidense.
Mas nem tudo era perfeito, há de se admitir. Na verdade, o Blaxploitation teve muitos críticos dentro da própria comunidade negra. Esses críticos alegavam que esses filmes propagavam alguns estereótipos e faziam um desserviço ao povo negro. Eles criticavam, entre outras coisas, a violência e a sexualização impostas aos corpos em alguns desses filmes. O próprio termo Blaxploitation, combinação das palavras “black” e “exploitation”, na verdade, foi criado como uma ofensa e foi cunhado por um dos críticos do movimentos, Junius Griffin, que, na época, era presidente da filial da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês) de Hollywood. É importante lembrar que o Blaxploitation nasceu por interesse financeiro dos estúdios, e vários filmes eram dirigidos por pessoas brancas, então, claro, nem tudo eram flores.
Lista de recomendações
Mas vamos lá, tá bom de conversa. Não se conhece cinema apenas lendo. É preciso ver os filmes, então, vamos a nossa listinha dos filmes que recomendo para quem quer começar a conhecer e entender melhor o que é o Blaxploitation.
1 – Sweet Sweetback’s Baadasssss Song (1971), de Melvin Van Peebles
Não tem como não indicar o grande filme de Melvin Van Peebles. Sweet Sweetback’s Baadasssss Song se tornou um dos grandes marcos do cinema negro estadunidense e foi a explosão que traçou os rumos do Blaxploitation.
No filme, acompanhamos Sweetback, que, após salvar um homem negro de policiais racistas, precisa fugir, pois sabe que será morto pela polícia quando capturado.
Huey P. Newton, cofundador do Partido dos Panteras Negras, promovia sessões periódicas de Sweet Sweetback’s Baadasssss Song para apresentar o filme a todos os novos membros do partido. Sobre o trabalho, Newton afirmou na época: “É o primeiro filme negro verdadeiramente revolucionário, feito por um homem negro… Ele mostra como as vítimas devem lidar com sua situação, utilizando diversas instituições e abordagens. O filme demonstra que uma das principais vias para nossa sobrevivência e o sucesso de nossa resistência é a unidade. Sweet Sweetback faz isso de maneira simbólica, incorporando muitos elementos da comunidade”.
Apesar de os filmes Blaxploitation serem em, sua grande maioria, de grandes estúdios, um dos primeiros grandes sucessos do gênero, Sweet Sweetback, foi um filme completamente independente, capitaneado por Melvin Van Peebles, que não apenas dirigiu, mas também o protagonizou, roteirizou, montou e ainda compôs a trilha sonora para o filme.
Falando em trilha, o filme não tinha dinheiro para marketing, então, Van Peebles decidiu lançar a trilha sonora antes do filme como material de propaganda, e deu muito certo. A secretária de Van Peebles o convenceu a contratar a banda de seu namorado para gravar a trilha. A banda que, na época era desconhecida, era uma tal de Earth, Wind & Fire… O resto é história. A trilha foi um sucesso, catapultou o filme – e a banda – e ainda ajudou a ditar como as trilhas de Blaxploitation deveriam ser.
2 – Coffy: Em Busca da Vingança (1973), de Jack Hill
Bem, não se fala de Blaxploitation sem citar a incrível Pam Grier. No Blaxploitation, existe toda uma leva de filmes protagonizados por mulheres ou com grandes personagens femininas. Vonetta McGee, Judy Pace, Tamara Dobson, Marlene Clark, Marki Bey e Gloria Hendry são algumas das atrizes de destaque desse período, com grandes filmes em seus currículos, mas foi Pam Grier quem passou a ser considerada a rainha do Blaxploitation. Dois dos filmes de maior sucesso da Grier são Coffy e Foxy Brown, ambos dirigidos por Jack Hill, com apenas um ano de intervalo entre cada um.
Em Coffy, Grier interpreta a enfermeira Coffy, que, depois de perder a irmã para as drogas, decide fazer justiça com as próprias mãos. Ela se disfarça de prostituta para se aproximar do mundo do crime e eliminar os chefes do tráfico.
Se você já assistiu Jackie Brown (1997), de Quentin Tarantino, agora sabe de onde ele tirou parte do nome do filme e também sua protagonista. Jackie Brown é a grande homenagem que Tarantino fez aos filmes de Blaxploitation, e que grande homenagem, diga-se de passagem. Eu não gostava tanto, mas, após conhecer melhor os filmes que inspiraram o Tarantino, eu passei a gostar e admirar muito o trabalho dele em Jackie Brown. Se você ainda não assistiu, veja Coffy e depois Jackie Brown. São filmes muito diferentes, mas ambos compartilham a mesma estrela maior: Pam Grier.
3 – Shaft (1971), de Gordon Parks
Shaft foi um dos grandes primeiros hits do Blaxploitation. O filme fez um enorme sucesso quando foi lançado, se tornou muito influente e, até hoje, é um dos filmes mais populares. Nos anos 2000, ele ganhou um remake protagonizado por Samuel L. Jackson, do qual eu me lembro de ver partes na Globo quando eu era adolescente. Mas não dei muita bola na época.
Agora, muitos anos depois, eu vi a versão original e fiquei maravilhado. Um grande filme policial com uma trilha sonora incrível composta e gravada por nada mais nada menos que Isaac Hayes. Aliás, elogiar as trilhas sonoras desses filmes é chover no molhado. É uma música mais incrível que outra. A trilha ganhou um Grammy de melhor trilha, e a música tema do filme ganhou o Oscar de melhor canção original. Aproveitando, vai aqui uma playlist no Spotify com grandes trilhas do Blaxploitation.
Issac Hayes acabaria protagonizando seu próprio blaxploitation poucos anos depois, o também maravilhoso Truck Turner, dirigido por Jonathan Kaplan. Também vale a pena conhecer esse.
Shaft é um detetive particular que é contratado por um gângster do Harlem para resgatar sua filha que foi sequestrada pela máfia italiana. Sinopse bem simples, mas com um resultado eletrizante. É a primeira vez que temos um detetive particular negro protagonizando um filme e investigando crimes em comunidades negras. O resultado é um dos filmes definidores do período.
O filme fez tanto sucesso que teve duas continuações: O Grande Golpe de Shaft (1972) e Shaft na África (1973)
4 – Super Fly (1972), de Gordon Parks Jr.
Para os mais atentos, sim, esse filme foi dirigido pelo filho do diretor de Shaft. Não bastasse o pai marcar o gênero para sempre, o filho foi lá e fez o mesmo. Super Fly, Shaft e Sweet Sweetback’s Baadasssss Song são muitas vezes citados como os três grandes sucessos definidores do Blaxploitation. Então, por isso, foi muito difícil deixar algum deles de fora dessa lista.
Em Super Fly, Ron O’Neal interpreta Youngblood Priest, um traficante que está tentando mudar seu destino e sair do mundo do crime. Um dos temas comuns do blaxploitation é a batalha contra “the man”, gíria usada pela população negra para se referir ao “sistema”, ao estado ou, até mesmo, à polícia. Em Super Fly, vemos a luta de um homem contra o elemento.
Eu sei que estou me repetindo, mas temos aqui mais uma grande trilha sonora, dessa vez escrita por Curtis Mayfield. O tema principal vai ficar na sua cabeça por dias depois de assistir o filme.
5 – Cleópatra Jones (1973), de Jack Starrett
Dentro do Blaxploitation, há algumas ramificações. Uma dessas é a mistura do gênero com filmes de kung-fu. Sim, uma das melhores combinações que poderiam existir. A pessoa que teve essa ideia merecia uma estrela na calçada da fama de Hollywood!
O filme que introduziu essa mistura foi o divertido Cleópatra Jones, protagonizado pela diva Tamara Dobson. Dobson interpreta uma agente secreta estilo James Bond que usa o trabalho de modelo como disfarce. Ela é uma das líderes de uma ONG de reabilitação para dependentes químicos. Quando sua ONG é atacada por traficantes, ela precisa intervir.
Imagina que você é uma garota preta em 1973 e assiste, no cinema, a uma mulher negra que, além de modelo, é uma agente secreta e que, por onde anda, é admirada e respeitada por todos e, de bônus, ainda é imbatível nas artes marciais. Bem, para mim, Cléopatra Jones é um dos grandes momentos de representatividade do Blaxploitation e é um filme consciente da importância dessa representatividade.
Últimas considerações
Esse é um texto introdutório e resumido. Deixei muita coisa de fora e tem muitos mais filmes que eu gostaria de indicar, inclusive, tem toda uma leva de filmes de terror Blaxploitation, que também acho que vale a pena conhecer, como A Vingança dos Mortos (1974), e também há outros filmes que não envolvem o universo policial ou do crime, como Car Wash, Onde Acontece de Tudo (1976) e Cooley High (1975), ambos dirigidos pelo grande Michael Schultz.
Mas acho que esses cinco filmes são um bom começo para quem quer conhecer esse que se tornou um dos gêneros mais importantes para a história do cinema negro estadunidense. Espero que gostem do universo Blaxploitation e que tenham boas experiências assistindo aos trabalhos.
Bons filmes e até mais!